O Labirinto de Antônia

Posted by Vicente de Oliveira Luiz | Posted in | Posted on 11:17

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Sim – ecoam os votos de amor que Antônia privou das alegrias e das tristezas do correr dos dias. Ela os escuta, sente o revólver nas mãos, o dedo no gatilho e o tranco dos tiros que não os silenciaram. Depois, perde a lembrança do que fez até que novamente os ouça, torne a empunhar a arma, atire e se esqueça mais uma vez. 


Antônia não foi a julgamento, mas experimentou os tormentos sem fim dos desprovidos de entendimento, em conflito com a lei, entre os muros de um hospital de custódia. Porém, ela não conheceu a redenção que o sofrimento traz. Depois de passar anos confinada, Antônia outra vez pôde ir e vir, mas não ficou nem três meses em liberdade e foi internada de novo, devido a uma tentativa de suicídio. 

Ninguém a visitou nem mesmo o Meireles, advogado e guardião dos bens e interesses dela. Contudo, quando Antônia saiu do hospital pela segunda vez, lá estava ele esperando, ao lado de um carro de luxo, estacionado na vaga reservada para idosos e deficientes, gesticulando e falando alto ao celular. Assim que a viu, empertigou-se, encerrou a ligação, fez-se melífluo e gentilmente abriu a porta do carro para ela. 

 – Tudo bem? – perguntou. 
 – Ahã... – balbuciou Antônia. 
 – Pronta para começar vida nova? – continuou o Meireles. 

Antônia nem sequer respondeu. Ela se encolheu no banco de passageiros, mordeu os lábios, coçou-se nervosa e procurou observar a cidade pela janela do carro, para evitar conversa. Porém, o Meireles já estava ao celular, muito gentil com uns e, nem tanto, com outros, tratando de seus assuntos. Entre um telefonema e outro, enchia o peito, murchava a barriga e ajeitava o cabelo para esconder a calvície, observando furtivamente Antônia. 

Magra, cabelos ralos e embranquecidos, olheiras, feridas na face e na orelha, escoriações nos braços e pernas, lacerações nas pontas dos dedos e unhas roídas, ela parecia se ocupar apenas em não deixar que suas chagas cicatrizassem. E isso era tudo que o Meireles queria. 

Ele pretendia ignorar as recomendações médicas para dar continuidade ao tratamento de Antônia em casa, embora não acreditasse na recuperação dela. Sobretudo, depois que ele ouviu uma testemunha da tentativa de suicídio declarar, em depoimento, que Antônia entrou na igreja, sentou-se no banco da primeira fila e entregou-se às orações. De repente, ela se levantou, foi até em frente ao altar, tirou um revólver da bolsa, apontou para a própria boca e, como se alguém tivesse puxado a arma no último instante, disparou ferindo a face e a orelha do lado direito. 

 – Foi a mão de Deus – concluiu a testemunha. 

Milagre ou não, o Meireles deu graças aos céus. No entanto, a menos que ele não se deixasse surpreender novamente, a obsessão de Antônia em pôr fim à própria vida acabaria colocando em risco os interesses dele. 

Sem se dar conta que o Meireles tramava contra ela, Antônia devaneava, impressionada com o movimento das pessoas e dos automóveis. A vida não esteve encarcerada percebeu ela, voltando para casa, que nem sequer reconheceu quando o Meireles estacionou em frente.

 – Chegamos. Está tudo como antes, viu? Eu mandei colocar grades nas janelas e reforçar as fechaduras. Com segurança não se brinca, não é? – alardeou, mostrando um revólver no porta-luvas. 

Não havia sinais de invasão ou depredação no velho casarão assobradado, somente os estragos que o tempo e a ausência de cuidados provocam. 

 – Ah... chamei a Dagmar para fazer companhia para você, tá? – informou o Meireles, como se elas já se conhecessem. 

A Dagmar os esperava na porta. Assim que chegaram, ela se aproximou, abraçou Antônia e a conduziu para o interior do casarão. O Meireles não entrou. Ao se despedir, fez sinais com a mão para a Dagmar avisando que ligaria mais tarde.

 À noite, Meireles ligou para a Dagmar: 

 – Tudo bem por aí, Dagmar?
 – Tudo bem, doutor! 
 –  Amanhã mesmo você já começa a mostrar as fotos pra ela. Ah... estive pensando que talvez uns passeios de carro pela vizinhança pudessem ajudar! 
 – Também acho – respondeu Dagmar, sem perceber que ele não estava pedindo a opinião dela. 
–  Não esquece, Dagmar!– ordenou o Meireles e desligou.

Na semana que antecedeu ao retorno de Antônia, eles organizaram álbuns de fotografias dela desde a infância. Depois, instalaram câmeras ocultas de TV, vasculharam o casarão em busca das armas da coleção do pai de Antônia e trocaram a munição por cartuchos de festim. 

Meireles sabia que Antônia não resistiria às lembranças e tentaria suicidar-se outra vez. Se Antônia atentasse mais uma vez contra a própria vida, sem sucesso, ele não teria dificuldade para provar que ela continuava incapaz de responder pelo que fazia. Então, alegando que seria necessário protegê-la de si mesma, providenciaria para que fosse esquecida num manicômio judiciário para sempre e, sem sobressaltos, tornaria seus todos os bens dela. 

 
Nos dias seguintes, Dagmar sentou-se ao lado de Antônia e exibiu os álbuns, sem que ela demonstrasse interesse, tampouco o Meireles teve melhor sorte com os passeios de carro pelo bairro. 

No entanto, mais de uma vez, Dagmar a surpreendeu olhando os álbuns. Quase sempre, ela os folheava, sem se deter. Vez ou outra, contudo, passava longos momentos contemplando a mesma fotografia. 

Em uma dessas ocasiões, diante de uma foto dela recebendo uma medalha, depois de vencer uma competição de tiro, Antônia se surpreendeu ao relembrar o entusiasmo de seu pai naquele dia, embora ele não fosse dado a exteriorizar emoções. 

Austero e de poucas palavras, ele se esforçou para educar a filha sem a presença da esposa, falecida logo depois do nascimento de Antônia. Porém, até mesmo brinquedos esquecidos no chão ou atrasos frequentes de Antônia para ir à escola o exasperavam e, ainda que não dissesse nada, era visível sua contrariedade. E viu a filha crescer arredia e reservada até que a alegria de Joana entrou na vida deles.

Quando a conheceu na escola, Antônia não gostou de Joana. Afável e extrovertida, Joana estava sempre cercada pelos colegas, participando das brincadeiras. Mas Joana simpatizou com Antônia e não sossegou até se tornarem amigas. Depois, não se separaram mais. Elas iam à escola pela manhã, brincavam na parte da tarde e se falavam ao telefone à noite. 

Até o pai de Antônia se rendeu aos encantos de Joana. Quando o viu pela primeira vez, ela fez uma mesura e se apresentou. Ele chegou a esboçar um sorriso ao retribuir o cumprimento, feliz por a filha ter uma amiga. 

Porém, mesmo diante de um álbum dedicado a elas, Antônia apenas vislumbrava reminiscências do que haviam vivido juntas e, acariciando as fotos da amiga com as pontas dos dedos, murmurava para si mesma: 

 – Jô... 

Ainda que fugazes, as recordações despertavam sentimentos sombrios em Antônia, que vagava a esmo pelo casarão, acalentando, antes que se dissipassem, as poucas lembranças que podia suportar. 

Mas não haveria trégua para ela. Disposta a seguir as ordens do Meireles a todo custo, Dagmar pegava um dos álbuns, sentava-se ao lado de Antônia e tecia comentários aparentemente casuais, como se estivesse lendo uma revista. No entanto, ela sempre insistia em mostrar fotografias de um acampamento na praia com Antônia e amigos.

Antônia olhava e tocava as fotos auscultando suas sensações até ser arrebatada pela emoção que sentiu no momento em que ela e Joana conheceram Miguel e se enamoraram. 

Os olhos, os lábios, as mãos, tudo nele provocava suspiros apaixonados em Joana e Antônia. Os pôsteres de galãs do cinema e da música que enchiam as paredes dos quartos delas foram esquecidos.

Joana não demorou a se aproximar do Miguel, arrastando Antônia consigo. Eles se tornaram amigos e só se separavam em feriados e nas férias. Joana e Antônia viajavam com suas famílias, e o Miguel acampava sozinho em praias pouco conhecidas. 

Ao se reencontrarem, contavam suas viagens, Joana e Antônia entreolhavam-se, sem graça, como se tivessem feito apenas um passeio; e o Miguel, vivido grandes aventuras. Com o passar dos anos, as viagens dele pareciam cada vez mais interessantes; e as delas, enfadonhas. Joana e Antônia queriam viajar com ele, mas antes teriam que convencer os pais e o próprio Miguel. Acostumado a privações em seus acampamentos, ele temia que sentissem falta das comodidades a que estavam habituadas e apresentou mais resistência do que as famílias delas, mas também acabou cedendo. 

Quando finalmente acamparam juntos, os receios do Miguel não se confirmaram. Elas se divertiram com as dificuldades das trilhas, ficaram encantadas em dormir na barraca e pouco se importaram com os borrachudos. 

Nesta viagem, Antônia percebeu que havia algo mais entre Miguel e Joana. Numa tarde de chuva, eles foram obrigados a ficar na barraca. Os carinhos entre Joana e Miguel ficaram mais ardentes. Constrangida, Antônia saiu na chuva. Miguel e Joana foram atrás dela e a encontraram chorando. 

Eles a consolaram dizendo que iam ficar juntos para sempre. Rindo, os três voltaram para a barraca abraçados, envolveram-se em carícias, fizeram amor pela primeira vez e, inebriados, juraram que nada ia separá-los. 

No dia seguinte, Joana e Antônia passaram a tarde colhendo flores com as quais fizeram grinaldas. À noite, encenaram que estavam se casando com Miguel. 

A felicidade daqueles dias se turvou, poucos meses depois, quando Joana contou para Antônia que estava grávida e que ela e o Miguel iam se casar. Antônia ficou furiosa e, aos gritos, cobrou a promessa que haviam feito na praia:

 – Nós juramos que íamos ficar juntos para sempre. Nós juramos!

Comovida, Joana a abraçou, dizendo: 

 – Nós vamos ficar sim, sua boba. E vamos ser muito felizes. 

 Entregue ao rancor, Antônia já não escutava o que Joana dizia e ameaçou: 

 – Eu não vou deixar. Não vou! 

Assombrada pela lembrança de suas palavras, Antônia deixou os álbuns de fotografia de lado e se entregou ao ensimesmamento. 

Na manhã do dia seguinte, Dagmar percebeu que Antônia não estava em casa e ligou para o Meireles. 
 
– Doutor, a Antônia sumiu. 
– Puta que pariu, Dagmar! Não falei para você ficar de olho nela? - esbravejou o Meireles. 
– Ela acordou cedo e saiu, mas já estou procurando por ela – retrucou.
– Não. Volta para casa para ver se ela pegou uma das armas e me avisa, tá? Eu sei aonde ela vai! 
 – Sim, senhor - assentiu a Dagmar. 

Minutos depois, a Dagmar mandou uma mensagem pelo celular, avisando que todas as armas que eles trocaram a munição por festim estavam nos mesmos lugares. A princípio, o Meireles se acalmou, mas resolveu verificar se o seu revólver estava no porta-luvas. Não estava. Xingou, buzinou e se rendeu a conjecturas. Talvez, a esposa, mas ela nem sequer tocava em armas; o filho era pequeno demais; a Dagmar não pegaria o revólver sem avisar e fazia um bom tempo que ele não mandava o carro para a revisão para culpar os mecânicos. E só restou a ele maldizer a hora em que mostrou o revólver para Antônia e os passeios de carro, quando provavelmente ela furtou a arma. 

Apreensivo com o rumo dos acontecimentos, Meireles foi até a igreja, onde deveria ter ocorrido o casamento de Joana e Miguel, e a encontrou sentada no banco da primeira fila, em frente ao altar. Ele ficou atrás de uma coluna, atento aos movimentos de Antônia. 

Ao ver Antônia absorta em pensamentos, o Meireles se tranquilizou. Porém, quando percebeu que ela estava agindo conforme a testemunha havia relatado no depoimento, ele voltou a se inquietar temendo que desta vez ela tivesse êxito em tirar a própria vida. 

Em vez de interferir, o Meireles rogou pela intervenção da Providência Divina e, aos pés da imagem do santo mais próximo, jurou que, se Antônia voltasse bem para casa, ele tomaria todos os cuidados para garantir o bem-estar dela. 

Enquanto o Meireles se entregava a súplicas e promessas, Antônia revivia a angústia daquele dia que a tornou cativa do arrependimento para sempre. Ela acordou de mau humor e ficou na cama até mais tarde, mesmo sabendo que seu pai deveria estar agastado com a possibilidade de um atraso. Depois, tomou banho, fez a maquiagem e vestiu-se. Visivelmente desconfortável com o vestido longo e com os sapatos de salto alto, Antônia caminhava com cuidado e devagar. Seu pai, num gesto raro de aproximação, ofereceu apoio e foram de braços dados ao casamento de Joana e Miguel. 

Na igreja, ela não reparou nos vestidos das madrinhas nem retribuiu os sorrisos dos outros convidados. Amuada, sentou-se, no banco da primeira fila, ao lado do pai, e permaneceu quieta até ouvir Miguel e Joana pronunciarem os votos nupciais. Então, ela respirou profundamente, levantou-se, foi até em frente ao altar, pegou um revólver da bolsa e disparou em Joana, atingindo-a nas costas, em Miguel, que havia se virado, no peito e teria alvejado a si mesma, caso não tivesse sido impedida. 

Atordoada, Antônia olhou em volta e viu a igreja quase vazia. Até então, ela não havia se dado conta de que alguém tinha puxado a arma de suas mãos, antes que desse fim a própria vida. 

Quando viu Antônia, inquieta,  balançar a cabeça negativamente, o Meireles ficou atento. Porém, logo, ela voltou a aparentar tranquilidade e permaneceu assim até ouvir, mais uma vez, Joana e Miguel dizerem sim para os contentamentos e as amarguras de uma vida juntos.

Então, Antônia levantou-se bruscamente, foi até em frente ao altar, tirou o revólver do Meireles da bolsa e o apontou para a própria boca, determinada a pôr fim a dor que a consumia.

 Num salto, o Meireles se aproximou e puxou a mão de Antônia. A arma disparou e o atingiu na cabeça.

– Pai – gritou Antônia abraçando o corpo sem vida do Meireles, antes de mais uma vez se refugiar sob o véu do esquecimento.

O último manuscrito

Posted by Vicente de Oliveira Luiz | Posted in | Posted on 13:44

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                             O Último Manuscrito
                                                                  
                                                                                       Eze e Vlad in memoria



Consta nos anais das civilizações perdidas que as comemorações do jubileu de coroação de Khedir, rei de Daren, ocorreram sob a influência nefasta dos astros, desencadeando acontecimentos que provocariam o fim dos dias de glória do reino.

Porém, aqui e ali, longe dos olhos e ouvidos do rei, um e outro deixavam escapar da barreira dos dentes que, enredado por aleivosias, Khedir cedeu ao desatino e abrigou o obscurantismo permitindo que o esclarecimento fosse preterido da vida do seu povo para sempre.

Anos depois, com o ocaso às portas do reino de Daren, os súditos ainda se lembravam dos festejos do jubileu de coroação de Khedir. Naqueles dias, a multidão ocupou ruas e praças para ver as apresentações de palhaços, malabaristas, atores e músicos. Até mesmo Tarsin, neto de Alaor, conselheiro do rei, se juntou ao povo para ovacionar as trupes de mambembes, embora fosse mais afeito aos estudos e ao recolhimento.

As comemorações culminaram com a leitura da história do reino para a corte e convidados estrangeiros em um banquete marcado por requinte e opulência.

O mestre-historiador iniciou a narrativa no momento em que o rei Muntari consolidava as fronteiras do reino. Depois, enumerou desde as pequenas realizações até as grandes façanhas dos reis de Daren, sem mencionar nenhum feito, extraordinário ou não, de Khedir.

Parecia que ninguém tinha se dado conta desse lapso na narrativa do mestre-historiador até que um dos convidados ironizou:

- Khedir cochilou na história!

Normalmente, todos riam dos casos de indolência do rei,  considerados caprichos de quem tudo era permitido. Desta vez, no entanto, o comentário causou mal-estar entre os comensais, emudecendo os talheres.

O rei experimentou mais uma vez recalques que o acometiam desde sempre. Órfão ainda menino, Khedir se sentia à sombra de seus ancestrais, sobretudo de Muntari, cuja presença pairava sobre o reino com a força de seu carisma.

Assim que os convivas se retiraram, os conselheiros se reuniram. Sob a acusação de desrespeito ao rei, os mais exaltados pediram a prisão do mestre-historiador e a destruição do pergaminho da história do reino.

O conselheiro Alaor advertiu que dar mostras de que o rei havia ficado melindrado por não ter sido mencionado na leitura do mestre-historiador revelaria a fragilidade de Khedir aos olhos dos súditos.

Os conselheiros se agitaram, e o salão do conselho ficou em polvorosa.

– Queimem todos – bradou um dos mais irascíveis.

Alguns conselheiros até se insurgiram, mas foram silenciados a berros e perdigotos em nome da honra do rei.

Antes que o desvario fosse encaminhado para a aprovação de Khedir, o conselheiro Alaor sugeriu a nomeação de censores para preservar os textos que não atentassem contra a dignidade do rei e a estabilidade do reino. O conselho louvou a prudência de Alaor e condenou à fogueira os textos que fossem censurados.

Quando o manuscrito da história do reino foi lançado às chamas, diante do rei e dos conselheiros, a multidão aplaudiu pensando se tratar de mais um evento comemorativo do jubileu de coroação. E continuou batendo palmas quando as fogueiras se espalharam por Daren.

Em festas marcadas por orgias e bebedeiras, obras de astronomia, tratados de medicina e compêndios de agricultura viraram cinzas a despeito da precaução do conselheiro Alaor. Temendo desagradar ao rei e à turba, os censores não ousavam poupar nem mesmo manuais de jardinagem.

Denúncias de escritos ofensivos ao rei vinham de todas as partes do reino. Alguns súditos se valeram de delações para se livrar de dívidas ou de  desafetos. Sem verificar se as acusações procediam, os soldados do rei vasculhavam as casas e prendiam os moradores, se encontrassem qualquer manuscrito, ou torturavam caso não.

Quando os insatisfeitos exteriorizaram indignação, as prisões ficaram cheias; e os carrascos, ocupados. Tarsin só não foi preso por ser neto do conselheiro Alaor, pois mais de uma vez foi flagrado tentando enviar pergaminhos para além das fronteiras de Daren.

Ao saber das peripécias do neto, Alaor o advertiu, com a autoridade de conselheiro, que a vontade do rei tinha que ser cumprida e, com a prudência de avô, o exilou a pretexto de que se familiarizasse com os costumes de outros povos.

A crise interna de Daren não passou despercebida pelos reinos vizinhos. Depois de décadas de paz, eles declararam guerra, reivindicando os territórios ocupados por Muntari.

Com os anos, as guerras abalaram a prosperidade do reino. Os impostos subiram, e o comércio, que antes atraía mercadores com especiarias tão variadas quanto as línguas que as nomeavam, fez-se escasso, agravando o descontentamento do povo.

Mesmo nestes tempos difíceis, as buscas aos manuscritos não cessaram. Mais raras, as fogueiras inflamavam o povo como nunca.

Quando soldados recém-chegados dos campos de batalha entregaram um rolo de pergaminho velino em um jarro de cerâmica encontrado numa gruta no deserto aos censores, eles presumiram se tratar do último pergaminho de Daren e não o queimaram para que o próprio rei tivesse o prazer de fazê-lo diante da multidão.

Os censores apresentaram o manuscrito ao rei que o pegou com cuidado. Devido à dificuldade para enxergar, ele acariciou com as pontas dos dedos palavras que jamais leria. Com a morte na cabeceira, Khedir não queria ser lembrado como o rei que privou seu povo das letras, tampouco parecer tíbio revogando o próprio decreto.

O rei ficou por longo tempo com o pergaminho no colo até decidir chamar o neto do falecido conselheiro Alaor. Embora continuasse desafiando publicamente o decreto do rei e acusando os censores de covardia, Tarsin atendeu à solicitação de Khedir e foi à corte para ouvir do próprio rei que caberia a ele decidir se o povo se reuniria para ouvir a leitura ou o crepitar das chamas do último manuscrito.

À noite, recolhido em seus aposentos, Tarsin repetiu os gestos de Khedir e tateou o pergaminho. Seus olhos foram capturados pelas palavras iniciais do manuscrito, e ele prosseguiu a leitura que o rei havia iniciado com as pontas dos dedos.

“Chego ao fim dos meus dias convencido de que a mentira tem melhor acolhimento do que a verdade. Outrora, quando fui responsável por copiar e enviar as leis do rei para todas as províncias do reino, acreditei que não fosse assim. Protegido na torre norte do castelo, só me preocupava com o rigor da transcrição e a beleza da grafia no código das leis, até que vozes se levantaram das ruas e puseram fim à tranquilidade daqueles dias.

A turba vociferava contra a presença de estrangeiros no reino, advertindo para o perigo que eles representavam aos costumes e religião. Não me juntei aos ataques, tampouco os refutei, supondo que não iriam longe, mas me enganei. O que se bradava nas ruas estava sendo engendrado nos salões do rei.

Nestes dias conturbados, ocorreu a mais importante corrida de cavalos do reino. E agitação do hipódromo silenciou as ruas.

Depois do páreo principal, foram identificados no cocho do cavalo vitorioso resquícios de uma mistura de água, mel e aveia. Como essa prática proibida para melhorar o desempenho dos animais era comum em outras terras e o proprietário da baia fosse estrangeiro, a conclusão de que se tratava de fraude foi imediata. Embora a conduta do acusado jamais tivesse sido questionada, o puro-sangue vencedor fizesse parte de um plantel de uma linhagem campeã e os queixosos estivessem à beira da falência devido a dívidas de jogo, a denúncia chegou ao tribunal do rei com a força de uma condenação.

Em um julgamento duvidoso, o tribunal sentenciou o acusado ao empalamento, confiscou todos os seus bens e perdoou as dívidas dos acusadores. O réu não alegou inocência nem pediu misericórdia. Em silêncio, ele se deixou conduzir ao cadafalso e agonizou até a morte mirando o firmamento.

Nos dias que se seguiram, não se ouviu mais ofensas nem se viu agressões aos estrangeiros. Só então, compreendi que era mais do que zelo por nossas tradições o que movia aqueles que incitaram a multidão e decidi buscar um lugar onde o clamor por justiça não fosse dirigido aos céus.

Nas minhas andanças, vi um homem livre ser acorrentado e chicoteado depois de alforriar seus escravos porque acreditava que o cativeiro humilha a todos, conversei com um homem justo encarcerado porque defendia que todos somos iguais perante a lei, caso contrário não há justiça, e ouvi um homem santo a caminho da forca pregar que as religiões são diferentes caminhos que conduzem a Deus.

Muitos anos e horizontes depois, encontrei refúgio para minhas quimeras à beira do deserto. Não fui adiante. Só aqueles que não temiam contemplar a solidão sem fim ousavam ir além.

Ali, vi andarilhos irem em busca de Deus ou da quietude da alma. Uns voltavam inflamados profetizando o fim dos tempos e condenando os homens à danação eterna. Outros retornavam silenciosos, cientes da própria ignorância sobre as verdades primeiras e incondicionadas.

Esses dias de aprendizado tiveram fim quando soldados de um grande rei em guerra pela consolidação das fronteiras do seu reino me privaram da paz dos ermos.

Vítima do que parecia um envenenamento, o grande rei mandou soldados em busca de alguém com conhecimento de ervas, já que não apresentava melhora sob os cuidados de seus médicos.

Não sei se foi pelo desejo de cumprir prontamente as ordens do rei, por eu viver isolado ou pelos meus cabelos brancos, mas os soldados atribuíram a mim conhecimentos que eu não tinha e me conduziram sob escolta ao acampamento do rei.

Apreensivo, fui levado à tenda do grande rei. Depois de alguns dias adoentado, o rei parecia melhor e dormia tranquilamente. Os médicos me confidenciaram que o envenenamento não passou de uma indigestão e que delírios levaram o rei a acreditar em uma conspiração contra sua vida.

No dia seguinte, os médicos me avisaram que o rei acordou bem disposto e que a minha a presença não seria mais necessária. No entanto, pouco depois, voltaram contrariados para dizer que o rei me aguardava.

Parece que o rei havia esquecido o motivo da minha presença ou ainda estava febril, pois solicitou  que eu contasse como viviam os soberanos de outras terras.

Creio que os anos de solidão tiraram as travas da minha língua e também meu juízo. Entusiasmado discorri sobre a vaidade dos reis, advertindo que a perspectiva de ser lembrado, além do seu tempo, fascina tanto os reis que eles se preocupam mais em construir castelos suntuosos, colecionar amantes, montar exércitos que sequem os rios por onde passem ou possuir domínios onde o sol nunca se põe do que em promover a justiça e romper os grilhões do povo. E ousei a vaticinar que um dia os homens escolherão seus governantes e terão direito a professar suas crenças e a expressar suas opiniões.

O grande rei não compartilhou meu arrebatamento. Com um gesto, impediu que eu continuasse, mas me manteve ao pé de si, como se tivéssemos assuntos pendentes, e voltou a atenção para outros interesses.

Em reunião com seus comandantes, soube que a rendição dos inimigos estava prestes a acontecer. Satisfeito com as notícias dos campos de batalha, o rei aproveitou para acertar as contas com alguns nobres que, segundo seus espiões, entre si o chamavam de filho do usurpador, e tratou de  transformar seus excessos à mesa em um complô de assassinato.

Na manhã seguinte, ordenou que o cozinheiro e os dois ajudantes suspeitos de tentar envenená-lo fossem interrogados. À tarde, eles foram decapitados. Os rumores de que houve uma tentativa para matar o rei tomaram conta do acampamento, e os soldados se agitaram nervosos.

O rei ordenou aos comandantes que acalmassem as tropas e  ficassem de atalaia. À noite, mandou distribuir vinho aos soldados e ofereceu um banquete aos nobres. Alguns foram recebidos com entusiasmo; outros, com indiferença.

Aqueles nobres que receberam tratamento menos caloroso por parte do rei desconfiaram que a suspeita de traição pairava sobre eles e abandonaram o acampamento durante a madrugada.

Capturados na manhã do dia seguinte, antes mesmo de serem interrogados, eles negaram envolvimento na conspiração contra o rei e juraram fidelidade ao trono. Porém, quando indagados por que abandonaram as tropas do rei, não souberam responder e ficaram em silêncio.

O próprio rei saiu em defesa dos acusados, declarando que todos estavam cansados da guerra e com saudades de causa. E, para que não restasse dúvidas sobre a lealdade deles, pediu que cada um deles assinasse uma declaração em um pergaminho negando a participação no conluio para assassiná-lo.

Aliviados, os nobres obedeceram, sem se dar conta que acabavam de atestar a existência da conspiração contra o rei.  Em seguida, o rei ordenou que soldados levassem os pergaminhos assinados para lugares distantes e os escondessem em locais determinados por ele.

Com a chegada da notícia de capitulação dos inimigos, o acampamento se alvoroçou. O grande rei comemorou com os soldados e comandantes, enquanto esperava emissários dos reinos derrotados para ratificarem  as novas delimitações das fronteiras.

Assinados os tratados, o rei mandou seus soldados me buscarem, antes de levantar acampamento. Temendo o mesmo destino daqueles que o desagradavam, lamentei não ter fantasiado sobre reis que construíram castelos tão grandes que eram necessários guias para que os hóspedes não se perdessem, ou tão luxuosos que, nas horas de luz mais intensa, todos usavam vendas nos olhos para que não fossem ofuscados pelo brilho do ouro e dos cristais.

Mas não havia o que recear, rei queria apenas me recompensar, ainda que não me surpreendesse se fosse o contrário. Os soldados me conduziram até a tenda dos tesouros do rei e ordenaram que eu pegasse o que pudesse carregar. Em vez de outro e prata, preferi papiros, pergaminhos-velino, penas de ganso e um tinteiro de cerâmica e voltei à serenidade dos ermos.

Ainda hoje, penso nas consequências do estratagema do grande rei para subjugar seus detratores; mesmo vivendo isolado, ouço rumores dos seus feitos e da prosperidade do seu reino e prevejo que, desonrados e ressentidos, cedo ou tarde, aqueles nobres cobrem vingança, já que não há maior prova de delito do que por escrito.”

Depois de terminar a leitura, Tarsin ficou vagando por seus aposentos. Os acontecimentos narrados no pergaminho não deixavam dúvidas de que o autor conhecia eventos sobre o reino de Daren que a maioria dos súditos nem sequer suspeitava.

Além de histórias contadas em segredo, no mercado e na cozinha, sobre o manuscrito dos traidores, mais de uma vez, Tarsin ouviu o avô se referir a Muntari, como o filho do usurpador, e a maldizer seus espiões.

Não foi difícil para Tarsin supor que os nobres coagidos por Muntari a assinar os pergaminhos ficaram sob suspeita de traição. E, às escondidas, procuraram destruí-los, mas as buscas foram em vão e só não foram deixadas de lado pelo temor que eles tinham de passar para a posteridade como traidores.

Diante das dificuldades para encontrar os pergaminhos, liderados por Alaor, eles orquestraram a encenação na leitura da história de Daren na festa do jubileu da coroação para que o próprio Khedir autorizasse a destruição dos manuscritos.

Entregue a conjecturas, Tarsin foi até o jardim e observou a lua minguar no céu de Daren. Se tomasse conhecimento do conteúdo do manuscrito, Khedir não demoraria a perceber que fora induzido a proibir os pergaminhos e acusaria de perfídia os envolvidos em fazê-lo de tolo. Os nobres, por sua vez, cientes da artimanha de Muntari para controlar seus ancestrais, jamais aceitariam que, mais uma vez, pairasse sobre eles a pecha da traição.

Um conflito de reputações entre o rei e nobres agravaria qualquer possibilidade de defesa diante das tropas dos reinos vizinhos que ameaçavam as fronteiras de Daren.

Porém, as palavras do nômade do deserto provocavam ainda mais inquietação em Tarsin. No princípio, elas causariam espanto, depois curiosidade e, finalmente, suscitariam dúvidas sobre  leis e crenças, até então inquestionáveis.

No dia seguinte, não fossem as roupas e o séquito, ninguém o reconheceria. Seus passos, antes firmes, agora titubeavam. O olhar vacilava sem se fixar em nada. Sombrio, ele se arrastou até o palácio.

Diante do rei e do conselho, Tarsin declarou:

 - Este pergaminho é ofensivo ao rei, aos nobres e ao povo. Portanto, deve ser destruído. 

Em seguida, entregou o último manuscrito de Daren ao rei Khedir que o lançou às chamas sob aplausos da multidão.
                                                                                                                                                                                Por Vicente de Oliveira Luiz

A Viúva Negra

Posted by Vicente de Oliveira Luiz | Posted in | Posted on 15:49

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Capítulo I

Rosa pertence a uma linhagem de mulheres lindas, com nomes de flores e terríveis sinas com os homens. Ela não acreditava sequer que sua vida pudesse ser diferente, pois já experimentara grande amargura. Sobre o pai, ela pouco sabia e de nada se lembrava. Com o primeiro namorado, teve certeza de sua má sorte, depois que a engravidou, ele disse que era casado e foi embora.

Desde então, Rosa viveu discretamente, dedicando-se exclusivamente à filha. Acreditava que, isolada e reclusa, abrandaria sua estrela nefasta e impediria que outros desapontamentos a acometessem.

Ainda assim, Rosa tornou-se objeto de desejo dos homens, inveja das mulheres e comentário de todos. Sua presença era um tributo à beleza da flor que a nomeava, assim como foi com sua mãe, Hortênsia; sua avó, Violeta; e seria com sua filha, Magnólia.

O comportamento reservado a envolvia em mistério e a tornava fascinante para um séquito de admiradores. Uns a assediavam sutilmente, outros nem tanto, mas todos queriam sua companhia e favores. Eles enviavam presentes e flores ou a convidavam para sair. E se deparavam com uma negativa categórica, mas cortês de Rosa. Em vez de fazer com que desistissem, suas recusas inflamavam a benquerença deles, e as investidas cada vez mais intensas a obrigavam a ser ainda mais arredia. As poucas palavras trocadas com ela, a discrição com a qual ela recusava os presentes e convites, o sorriso acanhado ante as juras de amor, a elegância dos gestos. Tudo isso revigorava as paixões dos pretendentes.

Houve até quem arriscasse uns versos, elevando-a a condição de musa, porém a maioria, sem nenhuma intimidade com a lira, preferiu mesmo foi louvar seus atributos mais palpáveis em vez de sua inefável beleza.

Quando Eugênio de Melo Vaz, o Geninho, um galã de condomínio, com fama de conquistador em shopping center, soube da beleza de Rosa, duvidou. Para ele, os embeiçados por ela eram afeitos a barangas e afins, portanto, desqualificados para avaliar uma mulher bonita.

Geninho viu Rosa pela primeira vez, quando ela levava Magnólia para a escola. Nesta ocasião, ela se vestia de maneira simples, quase austera, num esforço consciente, mas em vão, para não ser notada. O corpo, confinado por um vestido ascético, pulsava sensualidade. Os cabelos ainda que estivessem presos pareciam querer se lançar ao vento. Os seios se projetavam desafiando o rigor do decote. O pouco que se via permitia a conclusão de que o que não se via era igualmente belo. Rosa exalava sedução.

Agora, como os demais, Geninho estava à mercê dos encantos de Rosa e para conquistá-la, ele teria que se desdobrar, e isso constituía uma novidade na vida dele.

De família tradicional, sem posses há gerações, Geninho sentia profunda nostalgia pela fortuna que não havia desfrutado e se perdia em devaneios com as delícias de uma vida nababesca.

Alguém disse que o último reduto de um canalha é a política, no caso do Geninho, um cafajeste notório, foi o primeiro. Quando garoto ele até quis ser jogador de futebol, sonhava com fama e riqueza, mas nem esta nem aquela seriam possíveis com o trato dele com a bola. Também em ser policial, a farda e o exercício da autoridade com impunidade o fascinavam, mas faltava a ele a têmpera para os rigores da vida na caserna.

Geninho viu no serviço público mais do que uma sinecura, ele contemplou a riqueza se avizinhar inexorável como uma sentença matemática. Ele queria recompensas sem percalços, com um cargo bem remunerado que exigisse pouco ou nenhum esforço. Não que isso fosse repreensível, no entanto, Geninho se lançava na política pronto a tratar o erário com o decoro de uma meretriz embriagada.

Cedo ou tarde, ele acreditava que teria êxito. Mas não foi bem assim, sem conseguir uma indicação para um cargo, Geninho tornou-se assessor de um vereador falastrão e prevaricador, o Sandoval Pires. Algo um tanto quanto reles para um homem com suas ambições, mas que se revelou não ser de todo ruim. Ele começou ciceroneando correligionários do interior e de outros estados na vida noturna e organizando jantares e festinhas para simpatizantes, empresários e lobistas. Depois, ganhou reputação nos bastidores do partido, limpando, com muita discrição, toda e qualquer sujeira que viesse a constranger quem estivesse com a probidade ameaçada, o que não era raro. Tudo parecia feito na medida para ele, do contrário, Geninho iria compartilhar suas aptidões em outra freguesia.

A despeito da ausência de caráter, Geninho causava boa impressão. Ele tinha boa aparência, era amigável como os bajuladores, loquaz como os mentirosos e envolvente como só os vaidosos costumam ser.

Ele enviou presentes, que Rosa recusou como havia feito com os demais, se ofereceu para acompanhá-la aonde quer que ela desejasse ir, mas ela não queria ir a lugar algum com ele ou outro qualquer. Então, Geninho mostrou uma malícia que os concorrentes não tinham, ele passou a se interessar por tudo que dizia respeito a ela, e isso se resumia a Magnólia. Os presentes e os convites passaram a ser para a menina que, ao contrário da mãe, não recusava nada.

Foram a parques e cinemas ou passeavam em shoppings. Uma das manias de Geninho, que incomodava muita gente, era estar sempre, com uma filmadora ou máquina fotográfica à mão, pronto para flagrar situações vexatórias de quem quer que fosse. Mas desta vez, sua intenção não era constranger, mas encantar. As fotos e vídeos de Magnólia foram o atalho para o coração de Rosa.

Geninho se fez presente de tal maneira na vida delas que nem mesmo os temores ancestrais de Rosa foram capazes de impedir que ela cedesse outra vez ao amor. E a leveza, que este sentimento traz, a tornou ainda mais bela.

Sem se dar conta de que não há trégua para uma estrela adversa, ela ousou ignorar sua desdita e sorriu para a vida. Porém, o destino aziago de Rosa hibernava reunindo forças para cobrar com rigor este momento de bem-aventurança.

Logo, eles estavam namorando, ficaram noivos e se casaram.

Na lua de mel, Rosa conheceu prazeres que sequer imaginava. Geninho era um amante experiente, certamente muito mais do que ela, cuja vida sexual se resumia, no máximo, a três ou quatro relações no banco de trás do carro do primeiro e único namorado.

Capítulo II

Embora fosse contra o casamento, a família de Geninho não se opôs. De fato, nem tentou. Todos consideravam um golpe do baú, e não um casamento com uma mãe solteira sem posses, como a sua única possibilidade de redenção social. Como era sabido que Geninho não tolerava ser contrariado, fez-se o silêncio cúmplice das calamidades.

Antes de conhecer Rosa, ele estava à beira da acomodação, com disposição apenas para ser mais um fracassado, amparado em toda a sorte de vícios e salvaguardado pelo menosprezo à sociedade que não reconhecia a singularidade de seus talentos. Agora renovado pelas núpcias, Geninho estava pronto para feitos à altura do seu gênio.

O casamento fez bem a ambos, Rosa vivia em êxtase. Sem o peso que a oprimia antes, ela mudou a maneira de se vestir e de se comportar. Trocou os vestidos austeros e de cores sóbrias por roupas modernas e coloridas e cedeu aos encantos do riso e da companhia. Não que ela tenha se tornado amiga de folguedos, apenas abandonou a atitude arredia e avessa a contatos que era sua garantia até então contra os revezes da vida.

A presença de Rosa e Geninho fascinava a todos. Até o vereador Sandoval Pires se deu conta do carisma do casal e não dispensava a presença deles a seu lado. Ele os apresentava com entusiasmo, rasgando elogios à beleza de Rosa, que era inegável, e ao caráter de Geninho, que era questionável.

Um sábado de madrugada, Geninho se deu conta que talvez as declarações do Pires tivessem surtido efeito. Ele recebeu uma ligação de uma mulher que falava em nome de Paulo César Frota, um jovem deputado, com futuro promissor e reputação até então ilibada. O deputado estava em uma festinha, e seu acompanhante, devido aos excessos da noitada, passou mal e precisava de ajuda.

Geninho fez algumas perguntas, anotou o endereço, pegou uma mochila com seu equipamento e saiu sem acordar Rosa, para mais uma vez escamotear deslizes que pudessem macular carreiras sólidas ou mesmo ascendentes de notáveis do partido.

Ele chegou ao hotel acompanhado de uma médica, uma antiga amante à espera do fim do casamento dele ou apenas de uma crise que permitisse a ela reviver alguns momentos de prazer com Geninho.

Eles foram recebidos por uma mulher, a mesma que fizera a ligação. Geninho viu que não se tratava de uma garota de programa; mas da noiva do deputado e filha do presidente do partido, o ex-senador Juvenal Linhares.

Ela estava tranquila e bem-vestida, mas o Frota estava dando chilique só de cueca. Ele andava de um lado para o outro, agitando os braços e falando exasperado sobre essa gente sem controle dos apetites e se lamentando sobre o que seria da vida dele sem o garotão.

Enquanto a médica examinava o rapaz, a noiva do Frota sentou-se para assistir televisão, indiferente ao que se passava ao redor. Depois de tratar o paciente, a médica sussurrou algo para Geninho e se retirou altiva e solene, como quem porta um segredo.

Geninho disse ao Frota que o garotão logo estaria bem, bastava que repousasse um pouco. Aproveitou e sugeriu que ele tomasse um calmante e descansasse também. Depois de tomar o sedativo, o deputado foi até a cama e ficou olhando o amante dormir, como uma adolescente velando o pôster de um galã na parede do quarto, até adormecer também.

Sem prestar atenção à televisão, os olhos de Geninho iam discretamente da mesa com bebidas, estimulantes e papelotes de cocaína até o corpo da noiva do deputado. Ela era magra, alta e elegante.

Lânguida e sensual, ela se levantou, foi até a cama e colocou uma manta sobre o noivo e o rapaz. Depois, serviu-se de uísque, cheirou uma carreira de cocaína e fez um gesto para que Geninho fizesse o mesmo. Estoicamente, ele declinou.

Geninho sentou-se em uma poltrona de forma que pudesse observar a cama onde o deputado e o rapaz dormiam, sem perder os movimentos dela. E só então aceitou o uísque que o envolveu em uma atmosfera de requinte e o lembrou que ele ainda era um pé-rapado.

Ali, dando os primeiros passos em um mundo em que ansiava pertencer, Geninho percebeu que havia amadurecido. Antes ele simplesmente partiria para cima da mulher, das drogas e da bebida, com o comedimento de um vira-lata esfomeado, mas sob o efeito inebriante de um uísque que ele jamais degustara, se deu conta que aquela mulher não era qualquer uma. De família abastada e poderosa, ela era ainda mais importante que o noivo.

Ele precisava saber como agir com aquela mulher, que parecia indiferente, mas estava atenta a tudo. Sentia os olhos dela, sutis e perspicazes, sobre ele.

Geninho não queria apenas transar com ela, desejava seduzi-la e, para isso, era necessário submetê-la. Ele esperou que seus olhos se encontrassem e se aproximou determinado. Ela não ofereceu resistência, quando ele a tocou na face, afagou os cabelos e percorreu avidamente os lábios dela com o polegar. Depois, ele a beijou no pescoço, deleitando-se com a maciez da pele e o perfume dos cabelos, passou as mãos pelo corpo e a despiu. Deixando-a apenas com brincos, colares e anéis para ataviar a nudez. Todo o desdém que ela eventualmente sentisse cedeu ante as carícias de Geninho. Ela se entregou com uma sofreguidão surpreendente, mas Geninho era um amante traquejado e licencioso e se valeu disso como nunca antes. Logo, os dois estavam transando, intensa e repetidas vezes, como um casal apaixonado, que se reencontrou depois de muito tempo. Depois se aninharam nos braços um do outro totalmente entregues e ficaram assim, retribuindo carinhos, sem prestar atenção a mais nada.

Um pouco antes de amanhecer, ela adormeceu. Geninho a tomou nos braços e a levou até a cama onde o deputado e o rapaz dormiam. Então, ele vasculhou os cestos de lixo e a geladeira, pegou tudo que pudesse causar constrangimento, comprometer ou incriminar, colocou na mochila e saiu com a certeza de dever cumprido e, é claro, de mais uma conquista, só que essa seria fundamental para o andamento de seus anseios arrivistas.

Na semana seguinte, os pensamentos de Geninho sondavam o porvir, ele ficou aluado até receber um convite para jantar com o deputado. Ao chegar ao restaurante, Geninho viu que o deputado estava acompanhado pela noiva; ele ficou embaraçado, ela não. O Frota agradeceu entusiasticamente e prometeu que ele seria muito bem recompensado. Geninho até tentou dizer que não precisava, que aquilo fazia parte do trabalho dele e que era tudo para o bem do partido, mas não disse, sabia que não convenceria.

Logo, os três eram vistos juntos em toda parte, Geninho substituiu o garotão no coração e na cama do deputado, com a credibilidade de um homem casado, a convicção de um homem a serviço de um bem maior e a lascívia de um proxeneta.

Às vezes, Rosa se juntava a eles em jantares e festas e ficava deslumbrada com a sofisticação do casal e com a atenção que eles devotavam ao marido. O deputado, mais de uma vez, fez comentários auspiciosos sobre o futuro do Geninho. Rosa anuía embevecida.

A presença constante dele ao lado dos noivos gerou comentários, mas a imagem arrebatadora de Rosa pairava acima de tudo impedindo que grassasse a maledicência.

Outro no seu lugar seria mais discreto, mas era a opinião de poucos e não da maioria que interessava para Geninho. Logo, ele mostraria isso de maneira contundente.

Um preposto de uma grande empreiteira de construção, Hilário Braga, se interessou por Rosa e insinuou que dificultaria as contribuições para a próxima campanha eleitoral do partido, caso não passasse alguns momentos com ela. Mas por apenas uma noite, ele não só facilitaria como dobraria as doações. Ousou até comentar que não se importava em se valer de qualquer expediente, inclusive o uso de drogas, para ter Rosa.

Quando soube, Geninho pasmou até o mais abjeto de seus pares, riu da sugestão do lobista e disse que não precisaria lançar mão de quaisquer artifícios que entorpecessem os sentidos de Rosa para que o Braga lograsse seus desejos.

Em um de seus encontros com a noiva do deputado, Geninho a instruiu que contasse a Rosa sobre o interesse do lobista nela e de sua ameaça em suspender as doações para a campanha e, sobretudo, que enfatizasse que isso arruinaria as esperanças dele no partido.

Depois disso, ele se fez distante e preocupado. Quando Rosa ficou sabendo do interesse do Braga por ela e das implicações desse afeto, entendeu o alheamento do marido e aceitou passar a noite com o lobista sem hesitar, como se fosse apenas mais uma obrigação trivial de dona de casa.
O partido conseguiu o apoio financeiro do lobista, mas Geninho ainda teria que provar que seu caráter estava à altura da moralidade torpe de seus pares.

Capítulo III

Quando Magnólia completou quinze anos, Geninho fez da festa de debutante dela um acontecimento à altura do status recém-adquirido. Com pompa, Magnólia foi apresentada à sociedade que Geninho até então apenas tangenciara. Compareceram pessoas importantes do recente círculo social dele, mas a presença de Juvenal Linhares, o presidente do partido, apesar dos sinais evidentes de decrepitude física, o deixou lisonjeado.

Magnólia ficou felicíssima, quando dançou a valsa com um galã de TV sem talento, salvo o de encantar adolescentes. Geninho distribuiu abraços e sorrisos aos anônimos e notáveis presentes, claro que com estes o entusiasmo era maior do que com aqueles.

Algum tempo depois, em uma das festinhas com o deputado e a noiva, Geninho soube que o Linhares tinha ficado fascinado por Magnólia e, embora debilitado e sem vigor, queria estar com ela com privacidade.

O Frota também acenou com uma indicação para um cargo importante graças a esse agrado e garantiu que nada de ruim aconteceria a Magnólia, já que as condições físicas do sogro deixavam a desejar.

Depois de momentos de silêncio, quando o Frota já esperava um sonoro não, uma espinafrada homérica ou mesmo um soco na cara, Geninho surpreendeu com sua ambição sem limite e parca dignidade, dizendo que não desejava um cargo qualquer, ele queria ser o tesoureiro da campanha nas próximas eleições, antes de entregar Magnólia ao Linhares.

Para gerar situações que permitissem a realização dos caprichos do Linhares, Geninho revelou mais uma vez que era talhado para aleivosias, mancomunado com o deputado, eles forjaram uma plataforma da campanha eleitoral, sugerindo ações em defesa do meio ambiente para atrair a juventude.

Depois, organizou eventos nos quais precisava viajar com frequência e insistia muito para que Rosa e Magnólia o acompanhassem. Elas viajavam com ele quase sempre, até que uma vez Rosa sentiu-se indisposta e deixou de ir, mas permitiu que Magnólia fosse.

Desta vez, era uma manifestação pela limpeza das praias. Com cobertura da imprensa, vários adolescentes, com camisetas com dizeres em prol da preservação da vida marinha, recolhiam entusiasmados lixo de uma praia.

À noite, depois do jantar, aconteceu uma festinha de comemoração. Geninho alertou os jovens para que não consumissem bebidas alcoólicas, mas deixou bebida ao alcance deles, sabendo que não se furtariam em se embriagar, inclusive Magnólia.

Enquanto Magnólia dançava com as amigas, Juvenal Linhares, à espreita, antecipava momentos de prazer com ela.

Ao perceber que um garçom levava margueritas para Magnólia e amigas, Geninho o interceptou, pegou a bandeja e batizou as bebidas. Ao notar que elas já estavam embriagadas, Geninho encerrou a festinha, deu uma pequena bronca em todos, num tom bem-humorado, por terem bebido e pediu que fossem dormir.

Ele mesmo conduziu Magnólia e as amigas aos quartos. Elas estavam tão entorpecidas que ele não teve dificuldade em deixar Magnólia no quarto do Linhares. Ele dopou as amigas para justificar o torpor de Magnólia no dia seguinte, mas agora não via razão para não tirar proveito disso, enquanto aguardava que o Linhares consumasse seus desejos com Magnólia, Geninho passou a noite com uma das garotas.

No dia seguinte, alheias e desanimadas, elas não se lembravam de quase nada da noite anterior. Geninho atribuiu o mal-estar delas à bebida.

Enfim, sua ambição incontida, aliada à índole duvidosa, encontrava sua seara. Ele estava se entrosando com as altas esferas e pronto para participar como convidado do banquete de abominações sem fim com os corruptos e sibaritas.

A indisposição de Rosa era decorrente de uma gravidez e foi marcada por sobressaltos e pesadelos, mesmo assim ela não se descuidou de Magnólia, a pretexto de ir ao ginecologista, fez com que a filha também fosse examinada, mas não havia nada de errado fisicamente com a menina constatou o médico.

Mas isso não a tranquilizou, ela não se perdoaria caso algo acontecesse com a filha. Seus temores voltaram avassaladores e ainda mais tétricos do que antes e só atenuaram quando o choro de Açucena ocupou a casa, mas o coração de Rosa permaneceu inquieto e sombrio.

Meses depois, em uma noite de chuva, Geninho foi vítima de uma tentativa de assassinato, quando voltava para casa. Alguém o alvejou com seis tiros quando ele acionava o controle remoto para abrir o portão da garagem. Geninho só foi encontrado na manhã seguinte, agonizando.
Ninguém escutou nada devido aos trovões, mas os vizinhos afirmaram ter visto um homem estranho rondando a casa naquele mesmo dia.

A polícia conseguiu um retrato falado do suspeito, um homem de meia-idade, estatura mediana, atarracado, cabelos grisalhos, barba por fazer, óculos ray-ban, boné preto, camisa xadrez, casaco militar, calça jeans e coturnos.

Ao lado do portão, atrás da cerca viva de hibiscos, onde o assassino ficou de tocaia, havia pegadas que permitiram que a polícia fizesse uma estimativa de peso do suspeito, o ângulo dos tiros e a identificação do número dos coturnos que ele usava.

Dias depois, luvas e uma arma com a numeração raspada e silenciador foram encontradas a dois quarteirões da casa do Geninho. Exames de balística comprovaram que era a arma do crime.

Muitos sabiam que Geninho não valia grande coisa, mas ser executado daquela maneira causou comoção, ainda mais depois que se soube que ele nunca mais andaria e falaria novamente. E só sobreviveria à custa de aparelhos.

Acreditava-se que Geninho não tinha inimigos até que a polícia apreendeu na casa dele vídeos comprometedores que vazaram para a imprensa e foram divulgados à exaustão como de costume. Em poucas horas, os envolvidos saíram das colunas sociais para as páginas policiais. Logo, só se falava do cinismo nauseante do Braga, o lobista, e do Pires, o vereador, contando vantagens numa roda de pôquer sobre fraudes em licitações e esquemas de lavagem de dinheiro, sem poupar detalhes escabrosos e nomes dos envolvidos, também foi assunto o chilique do deputado na noite em que Geninho o conheceu e, sobretudo, o Linhares bolinando uma menor, nua e drogada.

Geninho foi visto como um herói, acreditava-se que ele estava reunindo provas para denunciar a sordidez e corrupção de seus pares na vida pública.

As investigações revelaram as falcatruas e os golpes de sempre, mas só arranharam a credibilidade dos envolvidos. O Braga e o Pires estavam sob investigação. O deputado Paulo César Frota recorreu a um expediente antigo dos bem-nascidos em desgraça e foi para o exterior com a noiva em busca de esquecimento. O Linhares se esquivava do processo por pedofilia, entrando e saindo de hospitais graças à proximidade da indesejada das gentes.

A despeito da grande repercussão e indignação que os vídeos provocaram, logo o caso foi esquecido, exceto por um ou outro taxista.

Meses depois do nascimento de Açucena, Rosa executou um ritual que seria repetido nos próximos anos. Pela manhã, ela dispensou a enfermeira e a empregada e levou Magnólia até a casa de sua mãe, Hortênsia. O dia transcorreu sem novidades para ela que estava habituada a se desdobrar em cuidados com Açucena e Geninho.

À noite, Rosa levou até o quarto uma mala, de onde retirou uma série de coisas que pôs meticulosamente em uma poltrona. Em seguida, colocou um vídeo para que Geninho assistisse. Normalmente era um filme de ação, mas desta vez era uma reportagem de TV sobre seu incidente, com declarações do delegado a respeito do andamento das investigações e apresentação do retrato falado do suspeito. Depois, imagens com o Braga e o Pires saindo de uma delegacia sem dar declarações. O Frota embarcando para o exterior com a noiva. Uma retrospectiva da carreira do Linhares com personalidades de destaque da política. E, finalmente, imagens dele, Geninho, sendo executado com seis tiros.

Enquanto isso, fora do alcance visual dele, Rosa se despiu e fez uso do que havia retirado da mala. Ela colocou enchimentos de espuma nas pernas, braços e tronco, cingiu pesos de chumbo nos pés e na cintura, vestiu uma calça jeans de homem, uma camisa xadrez, um casaco preto e calçou um coturno militar com o número bem maior do que o dela. Depois, se maquiou, transformando sua pele jovem em enrugada e macilenta. Aplicou um queixo falso com uma barba rala e arrematou com uma peruca grisalha, um boné preto e óculos ray-ban. Açucena, em pé no berço, ria com a transformação de sua mãe.

Então, Rosa surgiu diante dele, Geninho quis correr e gritar, mas estava à mercê de seu algoz. Ela saboreou seu temor, com a tranquilidade de quem degusta o prato que deve ser servido frio, ficou em pé diante dele até que a reconhecesse e compreendesse que ninguém tocaria na filha dela impunemente. Depois, fez um gesto com a mão como se fosse um revólver, apontou o indicador para a cabeça de Geninho e flexionou o polegar seis vezes, imitando com a boca o som surdo de tiros, sob o olhar divertido e os risos de Açucena.