A Viúva Negra

Posted by Vicente de Oliveira Luiz | Posted in | Posted on 15:49

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Capítulo I

Rosa pertence a uma linhagem de mulheres lindas, com nomes de flores e terríveis sinas com os homens. Ela não acreditava sequer que sua vida pudesse ser diferente, pois já experimentara grande amargura. Sobre o pai, ela pouco sabia e de nada se lembrava. Com o primeiro namorado, teve certeza de sua má sorte, depois que a engravidou, ele disse que era casado e foi embora.

Desde então, Rosa viveu discretamente, dedicando-se exclusivamente à filha. Acreditava que, isolada e reclusa, abrandaria sua estrela nefasta e impediria que outros desapontamentos a acometessem.

Ainda assim, Rosa tornou-se objeto de desejo dos homens, inveja das mulheres e comentário de todos. Sua presença era um tributo à beleza da flor que a nomeava, assim como foi com sua mãe, Hortênsia; sua avó, Violeta; e seria com sua filha, Magnólia.

O comportamento reservado a envolvia em mistério e a tornava fascinante para um séquito de admiradores. Uns a assediavam sutilmente, outros nem tanto, mas todos queriam sua companhia e favores. Eles enviavam presentes e flores ou a convidavam para sair. E se deparavam com uma negativa categórica, mas cortês de Rosa. Em vez de fazer com que desistissem, suas recusas inflamavam a benquerença deles, e as investidas cada vez mais intensas a obrigavam a ser ainda mais arredia. As poucas palavras trocadas com ela, a discrição com a qual ela recusava os presentes e convites, o sorriso acanhado ante as juras de amor, a elegância dos gestos. Tudo isso revigorava as paixões dos pretendentes.

Houve até quem arriscasse uns versos, elevando-a a condição de musa, porém a maioria, sem nenhuma intimidade com a lira, preferiu mesmo foi louvar seus atributos mais palpáveis em vez de sua inefável beleza.

Quando Eugênio de Melo Vaz, o Geninho, um galã de condomínio, com fama de conquistador em shopping center, soube da beleza de Rosa, duvidou. Para ele, os embeiçados por ela eram afeitos a barangas e afins, portanto, desqualificados para avaliar uma mulher bonita.

Geninho viu Rosa pela primeira vez, quando ela levava Magnólia para a escola. Nesta ocasião, ela se vestia de maneira simples, quase austera, num esforço consciente, mas em vão, para não ser notada. O corpo, confinado por um vestido ascético, pulsava sensualidade. Os cabelos ainda que estivessem presos pareciam querer se lançar ao vento. Os seios se projetavam desafiando o rigor do decote. O pouco que se via permitia a conclusão de que o que não se via era igualmente belo. Rosa exalava sedução.

Agora, como os demais, Geninho estava à mercê dos encantos de Rosa e para conquistá-la, ele teria que se desdobrar, e isso constituía uma novidade na vida dele.

De família tradicional, sem posses há gerações, Geninho sentia profunda nostalgia pela fortuna que não havia desfrutado e se perdia em devaneios com as delícias de uma vida nababesca.

Alguém disse que o último reduto de um canalha é a política, no caso do Geninho, um cafajeste notório, foi o primeiro. Quando garoto ele até quis ser jogador de futebol, sonhava com fama e riqueza, mas nem esta nem aquela seriam possíveis com o trato dele com a bola. Também em ser policial, a farda e o exercício da autoridade com impunidade o fascinavam, mas faltava a ele a têmpera para os rigores da vida na caserna.

Geninho viu no serviço público mais do que uma sinecura, ele contemplou a riqueza se avizinhar inexorável como uma sentença matemática. Ele queria recompensas sem percalços, com um cargo bem remunerado que exigisse pouco ou nenhum esforço. Não que isso fosse repreensível, no entanto, Geninho se lançava na política pronto a tratar o erário com o decoro de uma meretriz embriagada.

Cedo ou tarde, ele acreditava que teria êxito. Mas não foi bem assim, sem conseguir uma indicação para um cargo, Geninho tornou-se assessor de um vereador falastrão e prevaricador, o Sandoval Pires. Algo um tanto quanto reles para um homem com suas ambições, mas que se revelou não ser de todo ruim. Ele começou ciceroneando correligionários do interior e de outros estados na vida noturna e organizando jantares e festinhas para simpatizantes, empresários e lobistas. Depois, ganhou reputação nos bastidores do partido, limpando, com muita discrição, toda e qualquer sujeira que viesse a constranger quem estivesse com a probidade ameaçada, o que não era raro. Tudo parecia feito na medida para ele, do contrário, Geninho iria compartilhar suas aptidões em outra freguesia.

A despeito da ausência de caráter, Geninho causava boa impressão. Ele tinha boa aparência, era amigável como os bajuladores, loquaz como os mentirosos e envolvente como só os vaidosos costumam ser.

Ele enviou presentes, que Rosa recusou como havia feito com os demais, se ofereceu para acompanhá-la aonde quer que ela desejasse ir, mas ela não queria ir a lugar algum com ele ou outro qualquer. Então, Geninho mostrou uma malícia que os concorrentes não tinham, ele passou a se interessar por tudo que dizia respeito a ela, e isso se resumia a Magnólia. Os presentes e os convites passaram a ser para a menina que, ao contrário da mãe, não recusava nada.

Foram a parques e cinemas ou passeavam em shoppings. Uma das manias de Geninho, que incomodava muita gente, era estar sempre, com uma filmadora ou máquina fotográfica à mão, pronto para flagrar situações vexatórias de quem quer que fosse. Mas desta vez, sua intenção não era constranger, mas encantar. As fotos e vídeos de Magnólia foram o atalho para o coração de Rosa.

Geninho se fez presente de tal maneira na vida delas que nem mesmo os temores ancestrais de Rosa foram capazes de impedir que ela cedesse outra vez ao amor. E a leveza, que este sentimento traz, a tornou ainda mais bela.

Sem se dar conta de que não há trégua para uma estrela adversa, ela ousou ignorar sua desdita e sorriu para a vida. Porém, o destino aziago de Rosa hibernava reunindo forças para cobrar com rigor este momento de bem-aventurança.

Logo, eles estavam namorando, ficaram noivos e se casaram.

Na lua de mel, Rosa conheceu prazeres que sequer imaginava. Geninho era um amante experiente, certamente muito mais do que ela, cuja vida sexual se resumia, no máximo, a três ou quatro relações no banco de trás do carro do primeiro e único namorado.

Capítulo II

Embora fosse contra o casamento, a família de Geninho não se opôs. De fato, nem tentou. Todos consideravam um golpe do baú, e não um casamento com uma mãe solteira sem posses, como a sua única possibilidade de redenção social. Como era sabido que Geninho não tolerava ser contrariado, fez-se o silêncio cúmplice das calamidades.

Antes de conhecer Rosa, ele estava à beira da acomodação, com disposição apenas para ser mais um fracassado, amparado em toda a sorte de vícios e salvaguardado pelo menosprezo à sociedade que não reconhecia a singularidade de seus talentos. Agora renovado pelas núpcias, Geninho estava pronto para feitos à altura do seu gênio.

O casamento fez bem a ambos, Rosa vivia em êxtase. Sem o peso que a oprimia antes, ela mudou a maneira de se vestir e de se comportar. Trocou os vestidos austeros e de cores sóbrias por roupas modernas e coloridas e cedeu aos encantos do riso e da companhia. Não que ela tenha se tornado amiga de folguedos, apenas abandonou a atitude arredia e avessa a contatos que era sua garantia até então contra os revezes da vida.

A presença de Rosa e Geninho fascinava a todos. Até o vereador Sandoval Pires se deu conta do carisma do casal e não dispensava a presença deles a seu lado. Ele os apresentava com entusiasmo, rasgando elogios à beleza de Rosa, que era inegável, e ao caráter de Geninho, que era questionável.

Um sábado de madrugada, Geninho se deu conta que talvez as declarações do Pires tivessem surtido efeito. Ele recebeu uma ligação de uma mulher que falava em nome de Paulo César Frota, um jovem deputado, com futuro promissor e reputação até então ilibada. O deputado estava em uma festinha, e seu acompanhante, devido aos excessos da noitada, passou mal e precisava de ajuda.

Geninho fez algumas perguntas, anotou o endereço, pegou uma mochila com seu equipamento e saiu sem acordar Rosa, para mais uma vez escamotear deslizes que pudessem macular carreiras sólidas ou mesmo ascendentes de notáveis do partido.

Ele chegou ao hotel acompanhado de uma médica, uma antiga amante à espera do fim do casamento dele ou apenas de uma crise que permitisse a ela reviver alguns momentos de prazer com Geninho.

Eles foram recebidos por uma mulher, a mesma que fizera a ligação. Geninho viu que não se tratava de uma garota de programa; mas da noiva do deputado e filha do presidente do partido, o ex-senador Juvenal Linhares.

Ela estava tranquila e bem-vestida, mas o Frota estava dando chilique só de cueca. Ele andava de um lado para o outro, agitando os braços e falando exasperado sobre essa gente sem controle dos apetites e se lamentando sobre o que seria da vida dele sem o garotão.

Enquanto a médica examinava o rapaz, a noiva do Frota sentou-se para assistir televisão, indiferente ao que se passava ao redor. Depois de tratar o paciente, a médica sussurrou algo para Geninho e se retirou altiva e solene, como quem porta um segredo.

Geninho disse ao Frota que o garotão logo estaria bem, bastava que repousasse um pouco. Aproveitou e sugeriu que ele tomasse um calmante e descansasse também. Depois de tomar o sedativo, o deputado foi até a cama e ficou olhando o amante dormir, como uma adolescente velando o pôster de um galã na parede do quarto, até adormecer também.

Sem prestar atenção à televisão, os olhos de Geninho iam discretamente da mesa com bebidas, estimulantes e papelotes de cocaína até o corpo da noiva do deputado. Ela era magra, alta e elegante.

Lânguida e sensual, ela se levantou, foi até a cama e colocou uma manta sobre o noivo e o rapaz. Depois, serviu-se de uísque, cheirou uma carreira de cocaína e fez um gesto para que Geninho fizesse o mesmo. Estoicamente, ele declinou.

Geninho sentou-se em uma poltrona de forma que pudesse observar a cama onde o deputado e o rapaz dormiam, sem perder os movimentos dela. E só então aceitou o uísque que o envolveu em uma atmosfera de requinte e o lembrou que ele ainda era um pé-rapado.

Ali, dando os primeiros passos em um mundo em que ansiava pertencer, Geninho percebeu que havia amadurecido. Antes ele simplesmente partiria para cima da mulher, das drogas e da bebida, com o comedimento de um vira-lata esfomeado, mas sob o efeito inebriante de um uísque que ele jamais degustara, se deu conta que aquela mulher não era qualquer uma. De família abastada e poderosa, ela era ainda mais importante que o noivo.

Ele precisava saber como agir com aquela mulher, que parecia indiferente, mas estava atenta a tudo. Sentia os olhos dela, sutis e perspicazes, sobre ele.

Geninho não queria apenas transar com ela, desejava seduzi-la e, para isso, era necessário submetê-la. Ele esperou que seus olhos se encontrassem e se aproximou determinado. Ela não ofereceu resistência, quando ele a tocou na face, afagou os cabelos e percorreu avidamente os lábios dela com o polegar. Depois, ele a beijou no pescoço, deleitando-se com a maciez da pele e o perfume dos cabelos, passou as mãos pelo corpo e a despiu. Deixando-a apenas com brincos, colares e anéis para ataviar a nudez. Todo o desdém que ela eventualmente sentisse cedeu ante as carícias de Geninho. Ela se entregou com uma sofreguidão surpreendente, mas Geninho era um amante traquejado e licencioso e se valeu disso como nunca antes. Logo, os dois estavam transando, intensa e repetidas vezes, como um casal apaixonado, que se reencontrou depois de muito tempo. Depois se aninharam nos braços um do outro totalmente entregues e ficaram assim, retribuindo carinhos, sem prestar atenção a mais nada.

Um pouco antes de amanhecer, ela adormeceu. Geninho a tomou nos braços e a levou até a cama onde o deputado e o rapaz dormiam. Então, ele vasculhou os cestos de lixo e a geladeira, pegou tudo que pudesse causar constrangimento, comprometer ou incriminar, colocou na mochila e saiu com a certeza de dever cumprido e, é claro, de mais uma conquista, só que essa seria fundamental para o andamento de seus anseios arrivistas.

Na semana seguinte, os pensamentos de Geninho sondavam o porvir, ele ficou aluado até receber um convite para jantar com o deputado. Ao chegar ao restaurante, Geninho viu que o deputado estava acompanhado pela noiva; ele ficou embaraçado, ela não. O Frota agradeceu entusiasticamente e prometeu que ele seria muito bem recompensado. Geninho até tentou dizer que não precisava, que aquilo fazia parte do trabalho dele e que era tudo para o bem do partido, mas não disse, sabia que não convenceria.

Logo, os três eram vistos juntos em toda parte, Geninho substituiu o garotão no coração e na cama do deputado, com a credibilidade de um homem casado, a convicção de um homem a serviço de um bem maior e a lascívia de um proxeneta.

Às vezes, Rosa se juntava a eles em jantares e festas e ficava deslumbrada com a sofisticação do casal e com a atenção que eles devotavam ao marido. O deputado, mais de uma vez, fez comentários auspiciosos sobre o futuro do Geninho. Rosa anuía embevecida.

A presença constante dele ao lado dos noivos gerou comentários, mas a imagem arrebatadora de Rosa pairava acima de tudo impedindo que grassasse a maledicência.

Outro no seu lugar seria mais discreto, mas era a opinião de poucos e não da maioria que interessava para Geninho. Logo, ele mostraria isso de maneira contundente.

Um preposto de uma grande empreiteira de construção, Hilário Braga, se interessou por Rosa e insinuou que dificultaria as contribuições para a próxima campanha eleitoral do partido, caso não passasse alguns momentos com ela. Mas por apenas uma noite, ele não só facilitaria como dobraria as doações. Ousou até comentar que não se importava em se valer de qualquer expediente, inclusive o uso de drogas, para ter Rosa.

Quando soube, Geninho pasmou até o mais abjeto de seus pares, riu da sugestão do lobista e disse que não precisaria lançar mão de quaisquer artifícios que entorpecessem os sentidos de Rosa para que o Braga lograsse seus desejos.

Em um de seus encontros com a noiva do deputado, Geninho a instruiu que contasse a Rosa sobre o interesse do lobista nela e de sua ameaça em suspender as doações para a campanha e, sobretudo, que enfatizasse que isso arruinaria as esperanças dele no partido.

Depois disso, ele se fez distante e preocupado. Quando Rosa ficou sabendo do interesse do Braga por ela e das implicações desse afeto, entendeu o alheamento do marido e aceitou passar a noite com o lobista sem hesitar, como se fosse apenas mais uma obrigação trivial de dona de casa.
O partido conseguiu o apoio financeiro do lobista, mas Geninho ainda teria que provar que seu caráter estava à altura da moralidade torpe de seus pares.

Capítulo III

Quando Magnólia completou quinze anos, Geninho fez da festa de debutante dela um acontecimento à altura do status recém-adquirido. Com pompa, Magnólia foi apresentada à sociedade que Geninho até então apenas tangenciara. Compareceram pessoas importantes do recente círculo social dele, mas a presença de Juvenal Linhares, o presidente do partido, apesar dos sinais evidentes de decrepitude física, o deixou lisonjeado.

Magnólia ficou felicíssima, quando dançou a valsa com um galã de TV sem talento, salvo o de encantar adolescentes. Geninho distribuiu abraços e sorrisos aos anônimos e notáveis presentes, claro que com estes o entusiasmo era maior do que com aqueles.

Algum tempo depois, em uma das festinhas com o deputado e a noiva, Geninho soube que o Linhares tinha ficado fascinado por Magnólia e, embora debilitado e sem vigor, queria estar com ela com privacidade.

O Frota também acenou com uma indicação para um cargo importante graças a esse agrado e garantiu que nada de ruim aconteceria a Magnólia, já que as condições físicas do sogro deixavam a desejar.

Depois de momentos de silêncio, quando o Frota já esperava um sonoro não, uma espinafrada homérica ou mesmo um soco na cara, Geninho surpreendeu com sua ambição sem limite e parca dignidade, dizendo que não desejava um cargo qualquer, ele queria ser o tesoureiro da campanha nas próximas eleições, antes de entregar Magnólia ao Linhares.

Para gerar situações que permitissem a realização dos caprichos do Linhares, Geninho revelou mais uma vez que era talhado para aleivosias, mancomunado com o deputado, eles forjaram uma plataforma da campanha eleitoral, sugerindo ações em defesa do meio ambiente para atrair a juventude.

Depois, organizou eventos nos quais precisava viajar com frequência e insistia muito para que Rosa e Magnólia o acompanhassem. Elas viajavam com ele quase sempre, até que uma vez Rosa sentiu-se indisposta e deixou de ir, mas permitiu que Magnólia fosse.

Desta vez, era uma manifestação pela limpeza das praias. Com cobertura da imprensa, vários adolescentes, com camisetas com dizeres em prol da preservação da vida marinha, recolhiam entusiasmados lixo de uma praia.

À noite, depois do jantar, aconteceu uma festinha de comemoração. Geninho alertou os jovens para que não consumissem bebidas alcoólicas, mas deixou bebida ao alcance deles, sabendo que não se furtariam em se embriagar, inclusive Magnólia.

Enquanto Magnólia dançava com as amigas, Juvenal Linhares, à espreita, antecipava momentos de prazer com ela.

Ao perceber que um garçom levava margueritas para Magnólia e amigas, Geninho o interceptou, pegou a bandeja e batizou as bebidas. Ao notar que elas já estavam embriagadas, Geninho encerrou a festinha, deu uma pequena bronca em todos, num tom bem-humorado, por terem bebido e pediu que fossem dormir.

Ele mesmo conduziu Magnólia e as amigas aos quartos. Elas estavam tão entorpecidas que ele não teve dificuldade em deixar Magnólia no quarto do Linhares. Ele dopou as amigas para justificar o torpor de Magnólia no dia seguinte, mas agora não via razão para não tirar proveito disso, enquanto aguardava que o Linhares consumasse seus desejos com Magnólia, Geninho passou a noite com uma das garotas.

No dia seguinte, alheias e desanimadas, elas não se lembravam de quase nada da noite anterior. Geninho atribuiu o mal-estar delas à bebida.

Enfim, sua ambição incontida, aliada à índole duvidosa, encontrava sua seara. Ele estava se entrosando com as altas esferas e pronto para participar como convidado do banquete de abominações sem fim com os corruptos e sibaritas.

A indisposição de Rosa era decorrente de uma gravidez e foi marcada por sobressaltos e pesadelos, mesmo assim ela não se descuidou de Magnólia, a pretexto de ir ao ginecologista, fez com que a filha também fosse examinada, mas não havia nada de errado fisicamente com a menina constatou o médico.

Mas isso não a tranquilizou, ela não se perdoaria caso algo acontecesse com a filha. Seus temores voltaram avassaladores e ainda mais tétricos do que antes e só atenuaram quando o choro de Açucena ocupou a casa, mas o coração de Rosa permaneceu inquieto e sombrio.

Meses depois, em uma noite de chuva, Geninho foi vítima de uma tentativa de assassinato, quando voltava para casa. Alguém o alvejou com seis tiros quando ele acionava o controle remoto para abrir o portão da garagem. Geninho só foi encontrado na manhã seguinte, agonizando.
Ninguém escutou nada devido aos trovões, mas os vizinhos afirmaram ter visto um homem estranho rondando a casa naquele mesmo dia.

A polícia conseguiu um retrato falado do suspeito, um homem de meia-idade, estatura mediana, atarracado, cabelos grisalhos, barba por fazer, óculos ray-ban, boné preto, camisa xadrez, casaco militar, calça jeans e coturnos.

Ao lado do portão, atrás da cerca viva de hibiscos, onde o assassino ficou de tocaia, havia pegadas que permitiram que a polícia fizesse uma estimativa de peso do suspeito, o ângulo dos tiros e a identificação do número dos coturnos que ele usava.

Dias depois, luvas e uma arma com a numeração raspada e silenciador foram encontradas a dois quarteirões da casa do Geninho. Exames de balística comprovaram que era a arma do crime.

Muitos sabiam que Geninho não valia grande coisa, mas ser executado daquela maneira causou comoção, ainda mais depois que se soube que ele nunca mais andaria e falaria novamente. E só sobreviveria à custa de aparelhos.

Acreditava-se que Geninho não tinha inimigos até que a polícia apreendeu na casa dele vídeos comprometedores que vazaram para a imprensa e foram divulgados à exaustão como de costume. Em poucas horas, os envolvidos saíram das colunas sociais para as páginas policiais. Logo, só se falava do cinismo nauseante do Braga, o lobista, e do Pires, o vereador, contando vantagens numa roda de pôquer sobre fraudes em licitações e esquemas de lavagem de dinheiro, sem poupar detalhes escabrosos e nomes dos envolvidos, também foi assunto o chilique do deputado na noite em que Geninho o conheceu e, sobretudo, o Linhares bolinando uma menor, nua e drogada.

Geninho foi visto como um herói, acreditava-se que ele estava reunindo provas para denunciar a sordidez e corrupção de seus pares na vida pública.

As investigações revelaram as falcatruas e os golpes de sempre, mas só arranharam a credibilidade dos envolvidos. O Braga e o Pires estavam sob investigação. O deputado Paulo César Frota recorreu a um expediente antigo dos bem-nascidos em desgraça e foi para o exterior com a noiva em busca de esquecimento. O Linhares se esquivava do processo por pedofilia, entrando e saindo de hospitais graças à proximidade da indesejada das gentes.

A despeito da grande repercussão e indignação que os vídeos provocaram, logo o caso foi esquecido, exceto por um ou outro taxista.

Meses depois do nascimento de Açucena, Rosa executou um ritual que seria repetido nos próximos anos. Pela manhã, ela dispensou a enfermeira e a empregada e levou Magnólia até a casa de sua mãe, Hortênsia. O dia transcorreu sem novidades para ela que estava habituada a se desdobrar em cuidados com Açucena e Geninho.

À noite, Rosa levou até o quarto uma mala, de onde retirou uma série de coisas que pôs meticulosamente em uma poltrona. Em seguida, colocou um vídeo para que Geninho assistisse. Normalmente era um filme de ação, mas desta vez era uma reportagem de TV sobre seu incidente, com declarações do delegado a respeito do andamento das investigações e apresentação do retrato falado do suspeito. Depois, imagens com o Braga e o Pires saindo de uma delegacia sem dar declarações. O Frota embarcando para o exterior com a noiva. Uma retrospectiva da carreira do Linhares com personalidades de destaque da política. E, finalmente, imagens dele, Geninho, sendo executado com seis tiros.

Enquanto isso, fora do alcance visual dele, Rosa se despiu e fez uso do que havia retirado da mala. Ela colocou enchimentos de espuma nas pernas, braços e tronco, cingiu pesos de chumbo nos pés e na cintura, vestiu uma calça jeans de homem, uma camisa xadrez, um casaco preto e calçou um coturno militar com o número bem maior do que o dela. Depois, se maquiou, transformando sua pele jovem em enrugada e macilenta. Aplicou um queixo falso com uma barba rala e arrematou com uma peruca grisalha, um boné preto e óculos ray-ban. Açucena, em pé no berço, ria com a transformação de sua mãe.

Então, Rosa surgiu diante dele, Geninho quis correr e gritar, mas estava à mercê de seu algoz. Ela saboreou seu temor, com a tranquilidade de quem degusta o prato que deve ser servido frio, ficou em pé diante dele até que a reconhecesse e compreendesse que ninguém tocaria na filha dela impunemente. Depois, fez um gesto com a mão como se fosse um revólver, apontou o indicador para a cabeça de Geninho e flexionou o polegar seis vezes, imitando com a boca o som surdo de tiros, sob o olhar divertido e os risos de Açucena.

Comments (2)

Parabéns, Vicente!

Coisa de mestre!

Vé se publica em algum lugar e para de mexer... hahahahah

Abraços

Sensacional Viça. O final me surpreendeu!
A ruptura acontece de maneira gradual, sem barulho, o texto flui bem, mesmo com toda erudição e vocábulos complexos. Parabéns.