O Labirinto de Antônia

Posted by Vicente de Oliveira Luiz | Posted in | Posted on 11:17

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Sim – ecoam os votos de amor que Antônia privou das alegrias e das tristezas do correr dos dias. Ela os escuta, sente o revólver nas mãos, o dedo no gatilho e o tranco dos tiros que não os silenciaram. Depois, perde a lembrança do que fez até que novamente os ouça, torne a empunhar a arma, atire e se esqueça mais uma vez. 


Antônia não foi a julgamento, mas experimentou os tormentos sem fim dos desprovidos de entendimento, em conflito com a lei, entre os muros de um hospital de custódia. Porém, ela não conheceu a redenção que o sofrimento traz. Depois de passar anos confinada, Antônia outra vez pôde ir e vir, mas não ficou nem três meses em liberdade e foi internada de novo, devido a uma tentativa de suicídio. 

Ninguém a visitou nem mesmo o Meireles, advogado e guardião dos bens e interesses dela. Contudo, quando Antônia saiu do hospital pela segunda vez, lá estava ele esperando, ao lado de um carro de luxo, estacionado na vaga reservada para idosos e deficientes, gesticulando e falando alto ao celular. Assim que a viu, empertigou-se, encerrou a ligação, fez-se melífluo e gentilmente abriu a porta do carro para ela. 

 – Tudo bem? – perguntou. 
 – Ahã... – balbuciou Antônia. 
 – Pronta para começar vida nova? – continuou o Meireles. 

Antônia nem sequer respondeu. Ela se encolheu no banco de passageiros, mordeu os lábios, coçou-se nervosa e procurou observar a cidade pela janela do carro, para evitar conversa. Porém, o Meireles já estava ao celular, muito gentil com uns e, nem tanto, com outros, tratando de seus assuntos. Entre um telefonema e outro, enchia o peito, murchava a barriga e ajeitava o cabelo para esconder a calvície, observando furtivamente Antônia. 

Magra, cabelos ralos e embranquecidos, olheiras, feridas na face e na orelha, escoriações nos braços e pernas, lacerações nas pontas dos dedos e unhas roídas, ela parecia se ocupar apenas em não deixar que suas chagas cicatrizassem. E isso era tudo que o Meireles queria. 

Ele pretendia ignorar as recomendações médicas para dar continuidade ao tratamento de Antônia em casa, embora não acreditasse na recuperação dela. Sobretudo, depois que ele ouviu uma testemunha da tentativa de suicídio declarar, em depoimento, que Antônia entrou na igreja, sentou-se no banco da primeira fila e entregou-se às orações. De repente, ela se levantou, foi até em frente ao altar, tirou um revólver da bolsa, apontou para a própria boca e, como se alguém tivesse puxado a arma no último instante, disparou ferindo a face e a orelha do lado direito. 

 – Foi a mão de Deus – concluiu a testemunha. 

Milagre ou não, o Meireles deu graças aos céus. No entanto, a menos que ele não se deixasse surpreender novamente, a obsessão de Antônia em pôr fim à própria vida acabaria colocando em risco os interesses dele. 

Sem se dar conta que o Meireles tramava contra ela, Antônia devaneava, impressionada com o movimento das pessoas e dos automóveis. A vida não esteve encarcerada percebeu ela, voltando para casa, que nem sequer reconheceu quando o Meireles estacionou em frente.

 – Chegamos. Está tudo como antes, viu? Eu mandei colocar grades nas janelas e reforçar as fechaduras. Com segurança não se brinca, não é? – alardeou, mostrando um revólver no porta-luvas. 

Não havia sinais de invasão ou depredação no velho casarão assobradado, somente os estragos que o tempo e a ausência de cuidados provocam. 

 – Ah... chamei a Dagmar para fazer companhia para você, tá? – informou o Meireles, como se elas já se conhecessem. 

A Dagmar os esperava na porta. Assim que chegaram, ela se aproximou, abraçou Antônia e a conduziu para o interior do casarão. O Meireles não entrou. Ao se despedir, fez sinais com a mão para a Dagmar avisando que ligaria mais tarde.

 À noite, Meireles ligou para a Dagmar: 

 – Tudo bem por aí, Dagmar?
 – Tudo bem, doutor! 
 –  Amanhã mesmo você já começa a mostrar as fotos pra ela. Ah... estive pensando que talvez uns passeios de carro pela vizinhança pudessem ajudar! 
 – Também acho – respondeu Dagmar, sem perceber que ele não estava pedindo a opinião dela. 
–  Não esquece, Dagmar!– ordenou o Meireles e desligou.

Na semana que antecedeu ao retorno de Antônia, eles organizaram álbuns de fotografias dela desde a infância. Depois, instalaram câmeras ocultas de TV, vasculharam o casarão em busca das armas da coleção do pai de Antônia e trocaram a munição por cartuchos de festim. 

Meireles sabia que Antônia não resistiria às lembranças e tentaria suicidar-se outra vez. Se Antônia atentasse mais uma vez contra a própria vida, sem sucesso, ele não teria dificuldade para provar que ela continuava incapaz de responder pelo que fazia. Então, alegando que seria necessário protegê-la de si mesma, providenciaria para que fosse esquecida num manicômio judiciário para sempre e, sem sobressaltos, tornaria seus todos os bens dela. 

 
Nos dias seguintes, Dagmar sentou-se ao lado de Antônia e exibiu os álbuns, sem que ela demonstrasse interesse, tampouco o Meireles teve melhor sorte com os passeios de carro pelo bairro. 

No entanto, mais de uma vez, Dagmar a surpreendeu olhando os álbuns. Quase sempre, ela os folheava, sem se deter. Vez ou outra, contudo, passava longos momentos contemplando a mesma fotografia. 

Em uma dessas ocasiões, diante de uma foto dela recebendo uma medalha, depois de vencer uma competição de tiro, Antônia se surpreendeu ao relembrar o entusiasmo de seu pai naquele dia, embora ele não fosse dado a exteriorizar emoções. 

Austero e de poucas palavras, ele se esforçou para educar a filha sem a presença da esposa, falecida logo depois do nascimento de Antônia. Porém, até mesmo brinquedos esquecidos no chão ou atrasos frequentes de Antônia para ir à escola o exasperavam e, ainda que não dissesse nada, era visível sua contrariedade. E viu a filha crescer arredia e reservada até que a alegria de Joana entrou na vida deles.

Quando a conheceu na escola, Antônia não gostou de Joana. Afável e extrovertida, Joana estava sempre cercada pelos colegas, participando das brincadeiras. Mas Joana simpatizou com Antônia e não sossegou até se tornarem amigas. Depois, não se separaram mais. Elas iam à escola pela manhã, brincavam na parte da tarde e se falavam ao telefone à noite. 

Até o pai de Antônia se rendeu aos encantos de Joana. Quando o viu pela primeira vez, ela fez uma mesura e se apresentou. Ele chegou a esboçar um sorriso ao retribuir o cumprimento, feliz por a filha ter uma amiga. 

Porém, mesmo diante de um álbum dedicado a elas, Antônia apenas vislumbrava reminiscências do que haviam vivido juntas e, acariciando as fotos da amiga com as pontas dos dedos, murmurava para si mesma: 

 – Jô... 

Ainda que fugazes, as recordações despertavam sentimentos sombrios em Antônia, que vagava a esmo pelo casarão, acalentando, antes que se dissipassem, as poucas lembranças que podia suportar. 

Mas não haveria trégua para ela. Disposta a seguir as ordens do Meireles a todo custo, Dagmar pegava um dos álbuns, sentava-se ao lado de Antônia e tecia comentários aparentemente casuais, como se estivesse lendo uma revista. No entanto, ela sempre insistia em mostrar fotografias de um acampamento na praia com Antônia e amigos.

Antônia olhava e tocava as fotos auscultando suas sensações até ser arrebatada pela emoção que sentiu no momento em que ela e Joana conheceram Miguel e se enamoraram. 

Os olhos, os lábios, as mãos, tudo nele provocava suspiros apaixonados em Joana e Antônia. Os pôsteres de galãs do cinema e da música que enchiam as paredes dos quartos delas foram esquecidos.

Joana não demorou a se aproximar do Miguel, arrastando Antônia consigo. Eles se tornaram amigos e só se separavam em feriados e nas férias. Joana e Antônia viajavam com suas famílias, e o Miguel acampava sozinho em praias pouco conhecidas. 

Ao se reencontrarem, contavam suas viagens, Joana e Antônia entreolhavam-se, sem graça, como se tivessem feito apenas um passeio; e o Miguel, vivido grandes aventuras. Com o passar dos anos, as viagens dele pareciam cada vez mais interessantes; e as delas, enfadonhas. Joana e Antônia queriam viajar com ele, mas antes teriam que convencer os pais e o próprio Miguel. Acostumado a privações em seus acampamentos, ele temia que sentissem falta das comodidades a que estavam habituadas e apresentou mais resistência do que as famílias delas, mas também acabou cedendo. 

Quando finalmente acamparam juntos, os receios do Miguel não se confirmaram. Elas se divertiram com as dificuldades das trilhas, ficaram encantadas em dormir na barraca e pouco se importaram com os borrachudos. 

Nesta viagem, Antônia percebeu que havia algo mais entre Miguel e Joana. Numa tarde de chuva, eles foram obrigados a ficar na barraca. Os carinhos entre Joana e Miguel ficaram mais ardentes. Constrangida, Antônia saiu na chuva. Miguel e Joana foram atrás dela e a encontraram chorando. 

Eles a consolaram dizendo que iam ficar juntos para sempre. Rindo, os três voltaram para a barraca abraçados, envolveram-se em carícias, fizeram amor pela primeira vez e, inebriados, juraram que nada ia separá-los. 

No dia seguinte, Joana e Antônia passaram a tarde colhendo flores com as quais fizeram grinaldas. À noite, encenaram que estavam se casando com Miguel. 

A felicidade daqueles dias se turvou, poucos meses depois, quando Joana contou para Antônia que estava grávida e que ela e o Miguel iam se casar. Antônia ficou furiosa e, aos gritos, cobrou a promessa que haviam feito na praia:

 – Nós juramos que íamos ficar juntos para sempre. Nós juramos!

Comovida, Joana a abraçou, dizendo: 

 – Nós vamos ficar sim, sua boba. E vamos ser muito felizes. 

 Entregue ao rancor, Antônia já não escutava o que Joana dizia e ameaçou: 

 – Eu não vou deixar. Não vou! 

Assombrada pela lembrança de suas palavras, Antônia deixou os álbuns de fotografia de lado e se entregou ao ensimesmamento. 

Na manhã do dia seguinte, Dagmar percebeu que Antônia não estava em casa e ligou para o Meireles. 
 
– Doutor, a Antônia sumiu. 
– Puta que pariu, Dagmar! Não falei para você ficar de olho nela? - esbravejou o Meireles. 
– Ela acordou cedo e saiu, mas já estou procurando por ela – retrucou.
– Não. Volta para casa para ver se ela pegou uma das armas e me avisa, tá? Eu sei aonde ela vai! 
 – Sim, senhor - assentiu a Dagmar. 

Minutos depois, a Dagmar mandou uma mensagem pelo celular, avisando que todas as armas que eles trocaram a munição por festim estavam nos mesmos lugares. A princípio, o Meireles se acalmou, mas resolveu verificar se o seu revólver estava no porta-luvas. Não estava. Xingou, buzinou e se rendeu a conjecturas. Talvez, a esposa, mas ela nem sequer tocava em armas; o filho era pequeno demais; a Dagmar não pegaria o revólver sem avisar e fazia um bom tempo que ele não mandava o carro para a revisão para culpar os mecânicos. E só restou a ele maldizer a hora em que mostrou o revólver para Antônia e os passeios de carro, quando provavelmente ela furtou a arma. 

Apreensivo com o rumo dos acontecimentos, Meireles foi até a igreja, onde deveria ter ocorrido o casamento de Joana e Miguel, e a encontrou sentada no banco da primeira fila, em frente ao altar. Ele ficou atrás de uma coluna, atento aos movimentos de Antônia. 

Ao ver Antônia absorta em pensamentos, o Meireles se tranquilizou. Porém, quando percebeu que ela estava agindo conforme a testemunha havia relatado no depoimento, ele voltou a se inquietar temendo que desta vez ela tivesse êxito em tirar a própria vida. 

Em vez de interferir, o Meireles rogou pela intervenção da Providência Divina e, aos pés da imagem do santo mais próximo, jurou que, se Antônia voltasse bem para casa, ele tomaria todos os cuidados para garantir o bem-estar dela. 

Enquanto o Meireles se entregava a súplicas e promessas, Antônia revivia a angústia daquele dia que a tornou cativa do arrependimento para sempre. Ela acordou de mau humor e ficou na cama até mais tarde, mesmo sabendo que seu pai deveria estar agastado com a possibilidade de um atraso. Depois, tomou banho, fez a maquiagem e vestiu-se. Visivelmente desconfortável com o vestido longo e com os sapatos de salto alto, Antônia caminhava com cuidado e devagar. Seu pai, num gesto raro de aproximação, ofereceu apoio e foram de braços dados ao casamento de Joana e Miguel. 

Na igreja, ela não reparou nos vestidos das madrinhas nem retribuiu os sorrisos dos outros convidados. Amuada, sentou-se, no banco da primeira fila, ao lado do pai, e permaneceu quieta até ouvir Miguel e Joana pronunciarem os votos nupciais. Então, ela respirou profundamente, levantou-se, foi até em frente ao altar, pegou um revólver da bolsa e disparou em Joana, atingindo-a nas costas, em Miguel, que havia se virado, no peito e teria alvejado a si mesma, caso não tivesse sido impedida. 

Atordoada, Antônia olhou em volta e viu a igreja quase vazia. Até então, ela não havia se dado conta de que alguém tinha puxado a arma de suas mãos, antes que desse fim a própria vida. 

Quando viu Antônia, inquieta,  balançar a cabeça negativamente, o Meireles ficou atento. Porém, logo, ela voltou a aparentar tranquilidade e permaneceu assim até ouvir, mais uma vez, Joana e Miguel dizerem sim para os contentamentos e as amarguras de uma vida juntos.

Então, Antônia levantou-se bruscamente, foi até em frente ao altar, tirou o revólver do Meireles da bolsa e o apontou para a própria boca, determinada a pôr fim a dor que a consumia.

 Num salto, o Meireles se aproximou e puxou a mão de Antônia. A arma disparou e o atingiu na cabeça.

– Pai – gritou Antônia abraçando o corpo sem vida do Meireles, antes de mais uma vez se refugiar sob o véu do esquecimento.

Comments (2)

Escrevo estas palavras logo após ter lido o "conto", com o intuito de registrar minha sensação sob os aspectos emocionais e pensamentos que me tocam. No primeiro instânte o silêncio, um certo desconforto, sem ter precisamente em mente o que me incomoda, fui tocado pelas cenas, o roteiro e a história, por Antonia e sua "angustia", o seu "labirinto". Na memória minha propria história de vida se passa em flashs, inúmeras outras histórias e associações a diversos contos que li, os labirintos de minha memória. Me lembrei de Borges e de Poe, talvez pelo impacto que me causam os contos destes dois autores. Belíssima história, inquietante, e como todo bom conto, merecem um distanciamento no tempo, onde os ecos do pensamento possam assimilar a mensagem.

Achei um conto muito bem construído. Consegui identificar algumas referências literárias e a presença delas foi realmente o que enriqueceu a história.
Pobre Antônia.
Angustiante e intrigante.