Um retoque de gênero

Posted by Vicente de Oliveira Luiz | Posted in | Posted on 11:53

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Por Vicente de Oliveira Luiz

O doutor Juvenal Guedes prezava, acima de tudo, a tranqüilidade. Viúvo, com três filhas casadas e genros que ele tinha em pouca ou nenhuma conta. Homem de posses e de todo o prestígio delas decorrente. Juvenal Guedes tinha tudo para continuar o mesmo seguir sossegado dos dias, não fosse um clamor do corpo, que ele pensava há muito ter subjugado.
No início foram sonhos. Não como aqueles que o doutor habitualmente tinha, sem fantasias, simples desdobramentos do seu cotidiano, mas intensamente eróticos, como ele só havia experimentado na adolescência. Ainda assim, o Guedes os tratou como se fossem meros caprichos da imaginação.
Então, apenas um, excitante e sensual, acompanhado de uma polução, anunciou algo mais do que simples devaneios. Juvenal Guedes não ia conseguir permanecer indiferente ao ocaso da sua vida sexual.
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Os sentidos do doutor entraram em polvorosa, bastava ouvir, mesmo que de longe, ou avistar, ainda que de relance, uma mulher para que Juvenal Guedes se empertigasse. Teso e aprumado, ele sorvia avidamente o ar, tentando sentir a fragrância da mulher.
Depois foi o comportamento. Até então arredio à companhia de outros que não fossem os seus e pouco dado a conversas mesmo com eles, Juvenal Guedes passou a aceitar todos os convites. Casamentos, batizados, aniversários, quermesses, lá estava o doutor exibindo cordialidade.
Os instintos do doutor estavam prestes a trair a discrição que o caracterizava. Sem conseguir falar sobre o que não tratasse de bois e vacas e, muito menos, decifrar os gestos que revelam o que as palavras não, o Guedes gargalhava sem entender o que havia motivado o riso e concordava com tudo o que diziam, sem se importar em disfarçar o seu interesse em decotes, meneios de ancas e cruzar de pernas.
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Porém o doutor Guedes não podia simplesmente sair por aí e arrumar o primeiro rabo-de-saia que se oferecesse, nem sequer nas casas de tolerância e cabarés da região e adjacências, ele poderia dar as caras sem que isso fosse notícia e um escândalo para a suscetível moral das filhas.
Elas também não aceitariam que o doutor fizesse como os outros fazendeiros da região que, como ele, se apossaram do título de doutor, mas continuavam com o mesmo comportamento dos antigos coronéis e dos déspotas sem patente.
Se algum deles estivesse na situação do doutor Guedes, já teria pegado uma mulher à força, ido a um ou a todos os prostíbulos da cidade ou até mesmo comprado uma mulher. Na maioria das vezes nem isso, a prática mais comum era trocar alguns quilos de mantimentos com famílias tão empobrecidas que ficavam agradecidas pelo farnel, aliviadas por terem uma boca a menos para sustentar e felizes pela escolhida que viveria sem privações.
As escolhidas eram moças muito jovens, raramente mulheres feitas. Eles sabiam que a beleza não resiste aos tratos da pobreza por muito tempo, onde este tipo de permuta é possível e, sobretudo, que a inexperiência delas os livraria de quaisquer comparações.
O doutor Juvenal Guedes não faria uma coisa nem outra, não por questões morais e éticas, simplesmente porque tinha aversão a mexericos e pilhérias, ainda mais a respeito dele. Ele sabia que ninguém diria nada na sua presença, porém na sua ausência exercitariam toda a maledicência de que eram capazes. As filhas, ainda que não o aprovassem, jamais o repreenderiam em nem uma das circunstâncias, mas os genros não iam economizar remoques diante do surto libidinoso do sogro.
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Por isso, traindo sua índole amante do recolhimento, o doutor resolveu fazer uma viagem para o Rio de Janeiro. Ele não precisou, nem era seu costume, dar satisfações sobre o motivo da viagem. As filhas providenciaram a passagem de ônibus, a reserva de um hotel no Leblon e até guias da cidade. Não que o doutor Guedes precisasse, ele voltava a um lugar conhecido em um dos momentos mais felizes da sua vida: sua lua-de-mel.
O doutor Juvenal Guedes chegou à rodoviária da Cidade Maravilhosa pela manhã, seguiu para o hotel reservado pelas filhas e depois saiu para um passeio. Ele ficou impressionado com a exuberância e a falta de pudor das mulheres nas praias. Os biquínis praticamente revelavam mais do que escondiam a nudez daqueles corpos saudáveis e perfeitos.
Entusiasmado, voltou para o hotel e tentou descansar, mas o doutor estava excitado demais para cochilar ou dormir e ficou vendo televisão, ou melhor, trocando de canal, sem o menor interesse pelo que via.
No início da noite, tomou um banho demorado, vestiu-se com apuro, sem perceber pegou o canivete pica-fumo, sempre à mão em suas andanças por sua fazenda, depois retirou dinheiro da carteira e o distribuiu pelos bolsos. O doutor Guedes saiu com a disposição de tempos idos há muito.
Por nostalgia, resolveu passar em Copacabana e jantar no hotel em que havia se hospedado com a esposa anos atrás. Percorrendo as ruas, ele ficou admirado com a movimentação do trânsito, com a quantidade de pessoas passeando e com a animação dos bares. Ainda era cedo, mas a vida noturna do Rio dava sinais claros da sua intensidade.
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Quando chegou ao hotel, ele teve uma surpresa ao ver que o lugar agora era uma boate; ainda assim, entrou e sondou o ambiente. O salão que antes servia de restaurante, agora servia a outros apetites, com várias mulheres seminuas dançando provocantemente. O doutor Guedes procurou uma mesa discreta, pediu um uísque e, favorecido pela atmosfera esfumaçada e à meia-luz, continuou observando o local. Havia um bar na lateral oposta à mesa do doutor e um palco no fundo onde acontecia um strip-tease para uma platéia pequena e entusiasmada.
O doutor não apreciava mudanças e só ficou um pouco mais à vontade depois de examinar tudo atentamente até encontrar sinais conhecidos. O tapete vermelho, puído e sujo, o lustre, o papel de parede sob inúmeras demãos e até duas gravuras de uma mulher, nua e vestida, deitada de costas sobre almofadas, pareciam ser os mesmos.
Talvez pelo cansaço da viagem, pela qualidade do uísque, pelo frenesi da cidade e da boate, o doutor sentiu-se indisposto. O tesão se foi, e instalou-se um desconforto natural em alguém habituado ao reduzido convívio com estranhos e, completamente, avesso à agitação.
Então o doutor Guedes viu uma mulher, encostada no balcão do bar, fumando e bebendo, com uma expressão de desalento e indiferença ao que se passava ao redor, que chamou a sua atenção mais do que o corpo escultural e bronzeado dela e o vestido curto e decotado que parecia seguir o mesmo princípio dos biquínis, que ele havia visto à tarde na praia.
Aí todos os seus incômodos cederam ao que o havia feito buscar agitação e alvoroço que ele tão pouco prezava. Bastou um olhar seguido de um aceno, e a mulher veio ao encontro do Guedes, que a recebeu encabulado. E antes que o doutor ficasse ainda mais embaraçado, tentando puxar conversa, ela mostrou o traquejo da sua profissão milenar, sentou-se com desenvoltura, deu um beijinho na face do doutor, disse que se chamava Michele, perguntou o nome dele, de onde ele era e se estava com vontade de fazer um programa.
O doutor consentiu sorrindo para si mesmo, balbuciou seu nome, de onde vinha e perguntou se ela queria beber e comer alguma coisa. Michele sequer recusou. Com um movimento provocante que envolveu olhos, boca, seios, coxas, todo o corpo; ela o convidou aos prazeres que o sexo promete propiciar e levantou-se.
Embasbacado pelo andar sensual da meretriz, o Guedes a acompanhou de um modo que parecia que o mal-estar tinha voltado. De fato, ele estava saboreando cada passo atrás da possibilidade de realizar desejos não motivados por fantasias ou lembranças.
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Quando chegaram ao quarto, o doutor Juvenal não perguntou o preço, tirou de um dos bolsos e colocou sobre uma mesa, ao lado direito da cama, uma quantia condizente com a realização do seu desejo. A prostituta sorriu e guardou o dinheiro.
Finalmente, o doutor Juvenal pôde liberar o desejo que o afastou do recolhimento que ele tanto estimava. O perfume dela era forte demais, a maquiagem também excedia o tolerável, mas quando o desejo por sexo toma conta, tudo mais é irrelevante e só sua satisfação ocupa os sentidos.
Inebriado pela atmosfera de sensualidade, o doutor Juvenal se entregou à luxúria que, segundo alguns, apetece ao corpo e desgosta à alma. Ela tirou o vestido com a velocidade que a prática proporciona, ficou só de calcinha e se exibiu envaidecida diante do deslumbramento do doutor. Os olhos do doutor percorreram o corpo dela com sofreguidão. Os cabelos louros, os lábios carnudos, os seios empinados, a cintura fina, a bunda arrebitada, as pernas torneadas, tudo nela deleitava o doutor.
Juvenal Guedes se atrapalhou ao tirar e colocar sua roupa no mancebo à esquerda da cama. Envolvente, ela o ajudou e, quando encontrou o canivete pica-fumo, perguntou com ironia se ele sempre andava armado. Depois, sussurrou, no seu ouvido, promessas de uma noite de prazer.
Quando ficou só de cuecas, isto é, de ceroulas, o doutor ficou embaraçado com a sua decadência diante daquele corpo jovem e saudável que o convidava. Porém, não há constrangimento que perdure ante o clamor do sexo e, como se fosse ainda um adolescente sem nenhuma experiência, o doutor se atirou, afoito e estabanado, sobre Michele.
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Apesar da idade, o Guedes não sabia o que fazer. Toda a experiência sexual dele se resumia à tradicional e às vezes subseqüentes visitas, na adolescência, a um bordel, e ao contato com uma única mulher, num casamento à moda antiga, cuja finalidade era quase que exclusivamente a reprodução, mas era todo o prazer que o doutor conhecia e jamais o deixou insatisfeito.
Michele sabia muito bem o que fazer e fez com uma paixão inimaginável em gestos que não são por amor. Seus lábios, língua, boca, envolveram o doutor em carícias orais que ele desconhecia, conheceu e gostou.
Depois, eles beberam e fumaram, deitados lado a lado, cada um a pensar em si. Até que o doutor ajeitou Michele de costas, colocou a mão em um dos seios e começou a se roçar nela. Ela abaixou a calcinha até a metade da bunda, ficou de quatro e rebolou como se ouvisse samba.
O doutor se entregou a um prazer que ele conhecia, mas só de ouvir falar, gozou novamente, cochilou abraçado com a meretriz, acordou satisfeito, andou pelo quarto, fumou um cigarro, olhando pela janela, e viu que a cidade parecia mais agitada do que antes.
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Depois, com a calma que segue o gozo, observou Michele dormindo e, ainda que fosse grato aos novos prazeres que ela havia proporcionado, sentiu que o que o motivara a empreender esta aventura foi o desejo de estar com uma mulher da maneira que ele conhecia.
O desejo voltou e, antes que Michele percebesse, Juvenal Guedes tirou a calcinha dela e ficou atônito com o que viu. Porém, o doutor não era homem de ficar estarrecido. Num salto, pegou o canivete pica-fumo e com uma rapidez rara para um homem da sua idade, mas condizente com a ira de alguém com a sua mentalidade diante de uma situação como aquela, segurou aquilo que não deveria estar ali com a mão esquerda e com a direita, incisivo e contundente, extirpou e atirou sobre a mesa o que ele jamais teria imaginado encontrar entre as pernas de uma mulher. O membro bateu, sem quicar, na mesa, ao lado da cama.
Michele esperneou, gritou e emudeceu com a boca escancarada, anunciando um berro assombroso, mas que não passou de um gemido fraco e débil do Adamastor, seu nome de batismo, o de guerra não resistiu ao acurado exame do doutor.
Foi uma correria histérica, putas, travestis, clientes e gigolôs entravam e saíam do quarto, enquanto o doutor se vestia impassível, depois de limpar o canivete pica-fumo. Antes mesmo que a polícia e o socorro para a vítima chegassem, a imprensa ávida ou não por fatos escabrosos já estava no local.
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No dia seguinte, fotos do doutor acabrunhado, da Michele ensangüentada, do membro inerte e exangue, do canivete pica-fumo lancinante e peremptório, estavam nas primeiras páginas dos jornais afeitos àquele tipo de acontecimento ou no caderno policial dos que não eram.
Juvenal Guedes evitou contato como pôde. A Michele não. Depois dos gritos iniciais, ela não se cansava em declarar que só lamentava que tivesse demorado e doído tanto, mas que ela passaria por tudo de novo para adequar sua anatomia a sua alma de mulher.
Ela deu entrevistas para jornais e revistas, participou de programas de televisão, exibiu fotos suas na infância, na adolescência e nos shows pelo Brasil e pelo mundo. Depois, mostrou literal e metaforicamente os documentos para uma revista masculina, exibindo a certidão de nascimento, a carteira de identidade, o passaporte, em fotos sensuais e ousadas.
Os jornais divulgaram tudo sobre cirurgias de mudança de gênero, com declarações de médicos, de pessoas que já haviam realizado a operação fora do país, dos que desejavam fazer ou mesmo de quem não tinha nada a ver com a situação, mas tinha algo para dizer.
O pequeno canivete pica-fumo do doutor também teve seu momento de fama e prestou seu tributo à cutelaria. Colecionadores exibiram canivetes feitos sob encomenda, de forma artesanal, antigos, clássicos, com destaque para os célebres Joseph Rodgers.
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Depois de passar a noite na delegacia, o doutor Guedes foi liberado. Não foi pela ausência de queixas e de antecedentes criminais nem pela competência do advogado de porta de xadrez que o doutor contratou. O caso foi arquivado porque homens de posse não são presos e, quando isso ocorre, não é por muito tempo, ainda mais por queixa de um travesti. Mesmo assim, o doutor saiu contrariado, seu canivete pica-fumo foi admirado, fotografado e tungado, ou melhor, confiscado como prova para um inquérito que sequer ocorreu.
A ausência de antecedentes se explica. O delegado, entusiasmado com a informatização, levantou a ficha criminal do doutor, sem considerar que ele tinha lá os seus desmandos e transgressões, mas esses eram anteriores a qualquer inovação tecnológica.
E de queixas também, Adamastor, o emasculado, perdeu a única parte do corpo que ainda era sua, porque o resto há muito estava sob o controle de Michele. E ela jamais diria uma palavra contra o seu benfeitor. Afinal, o que atestava a identidade do Adamastor negava a dela e, portanto, deveria ser extirpado sem lamentações.
Algumas vozes se ergueram para criticar a brutalidade do ato praticado contra Michele; outras para louvar a atitude do doutor; mas a maioria delas apenas para dizer toda sorte de disparates sobre o incidente.
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Depois de ser assunto nos escritórios, bares e praias, o caso saiu das páginas dos jornais e do noticiário de rádio e TV. No entanto, não foi olvidado, havia sempre um engraçadinho à espreita, disposto a lembrar a habilidade de esculápio do Guedes. Uma e outra senhora mais ofendida empenhada em não deixar a aventura do doutor cair no esquecimento. E a gratidão da Michele, não bastasse suas visitas, anunciadas ou não, sozinha ou com entourage, ela não escondia a disposição em proporcionar ao doutor o prazer que não podia ter dado antes e em recordar o que ele queria tirar para sempre da memória.
Juvenal Guedes nunca mais teve o sossego e a tranqüilidade da maneira que ele tanto prezava, recolhido em sua fazenda, engordando o gado conforme o ditado, longe da língua do povo.

Comments (3)

Pobre doutor... rs

História tecida com engenho e arte. Envolvente, forte, criativa e com uma dose de realismo, sem perder a comicidade. Quantos Juvenais Guedes estão mundo afora, longe da língua do povo?

Adorei ver seus contos "publicados" mesmo que seja em um blog mas tenho certeza de que um dia irei buscar um livrinho autografado por vc... Vamos logo, estou esperando vc postar outros.
bjs
Poli