Mazé

Posted by Vicente de Oliveira Luiz | Posted in | Posted on 09:13

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Por Vicente de Oliveira Luiz


Maria José, ou melhor, Mazé como era conhecida, é aquele tipo de pessoa absolutamente confiável que, no entanto, nunca chegou a conquistar a confiança de ninguém. Discreta e avessa a cochichos e fofocas, suas preocupações consistiam em trabalhar, economizar o que pudesse e enviar para a família. Parecia que tudo mais não lhe dizia respeito, não fosse uma paixão arrebatadora por telenovelas.

Há anos trabalhava como empregada doméstica em casas de família, sem conseguir permanecer no mesmo emprego por muito tempo e sem o menor interesse em saber o motivo das demissões. Mazé só ficava preocupada, entre uma casa e outra, com o dinheiro para enviar à mãe; e, entre um capítulo e outro, com a trama e as desventuras dos personagens da novela.

Numa ocasião, ela trabalhou em uma casa e assistiu ao início de mais uma novela. À primeira vista, a família parecia igual às outras; e a novela, especial, mas mesmo que não fossem, Mazé não se daria conta, porque em relação às famílias com as quais trabalhava, comuns ou não, toda a sua atenção era dedicada a cumprir suas obrigações; e quanto às novelas a que assistia, boas ou não, todas tinham a seus olhos a tessitura dos sonhos e preenchiam plenamente suas fantasias.

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Desta vez, era uma família formada por um casal, com uma filha de aproximadamente 21 anos e um garoto de 4 anos. O contato de Mazé era um pouco maior com a patroa; com o marido, a filha e o menino, se resumia a encontros eventuais, quando ela chegava ou saía do trabalho.

A patroa acordava lá pelas dez horas e tomava seu café em silêncio. No almoço, ela era monossilábica e, no fim da tarde, depois de tomar seu primeiro drink, era pura loquacidade. Então só restava a Mazé ouvir o que quer que fosse que a patroa dissesse, fingindo um interesse que de modo algum ela sentia.

E foi em momentos como esses que Mazé conheceu alguns dos segredos da família. Soube que a jovem era filha do primeiro casamento da patroa e, dias e drinks depois, que o menino era neto dela, fruto de uma aventura da filha na adolescência. Porém, ela e o marido o assumiram publicamente como filho. A semelhança entre eles ajudou muito, eram os mesmos cabelos e olhos negros, ao contrário da mãe e da avó, que eram loiras e tinham olhos verdes. Assim pouparam a filha dos inconvenientes de ser conhecida como mãe solteira e, também, ao garoto de ser filho de uma.

Embora a patroa reclamasse do marido, lamentando ter se casado com um homem mais jovem, também admitia que ele era muito afetuoso com a filha dela e tratava o menino como se fosse realmente filho dele. Mas ela tinha certeza de que ele a traía e que, depois de conseguir o que queria profissionalmente graças aos contatos dela, seria capaz de abandoná-la por uma ninfeta qualquer.

Ela também dizia que o marido não a desejava mais e quando ela o procurava, ele a tratava sem o menor entusiasmo, como se estivesse cumprindo uma obrigação, e tomava banho em seguida o que a magoava tanto quanto a indiferença.

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Mazé ia tocando sua vida, acompanhando cada capítulo da novela como se fosse o último, trabalhando e enviando dinheiro para a família, sem se dar ao trabalho em pensar na vida dos patrões e nas condições singulares impostas ao seu trabalho.

A patroa quis que ela dormisse no trabalho, mas a filha foi contra e recomendou, expressa e sigilosamente, que ela nunca chegasse antes das 9 horas da manhã e, jamais, saísse depois das 18 horas. Maria José, por índole e disposição, nem mesmo considerou o que havia de inusitado nas recomendações da filha da patroa e as seguiu à risca.

Acostumada a acordar de madrugada, Mazé até que gostou do novo horário, principalmente, porque passou a economizar metade do dinheiro da condução, caminhando para o trabalho, e ainda podia sondar as bancas de jornal à procura de notícias sobre as telenovelas.

Quando chegava, apenas a patroa estava em casa e, quase sempre, dormindo. Mazé dava início aos seus afazeres com os sentidos atentos a tudo que fosse pertinente ao bom andamento do seu serviço e a nada mais. Nem a desordem que ela encontrava na cozinha e na casa a levava a pensar, sequer por um momento, nas razões de alguém, com tão pouca prática e nenhuma disposição para os serviços domésticos, mandar a empregada chegar mais tarde e sair mais cedo do trabalho.

Nada que não dissesse respeito às telenovelas a interessava ou despertava a sua curiosidade, mesmo quando encontrava copos de bebida, cinzeiro com pontas de cigarros de marcas diferentes, preservativos no banheiro, meias de homem, cuecas e lençóis sujos de esperma na cama da filha da patroa, Mazé pensava a respeito ou cogitava em saber quem e como ela recebia homens em casa e por que a patroa, sempre disposta a confidências depois do primeiro drink no fim da tarde, jamais ter comentado nada a respeito.

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Até mesmo os comentários de Mazé não eram motivados por qualquer outro assunto que não tratasse de personagens e atores de novela, nem mesmo quando voltava para casa com as amigas, empregadas como ela, que não perdiam a chance de praticar a maledicência, falando sobre a vida dos patrões e espinafrando seus comportamentos.

Uma manhã quando caminhava tranqüilamente pela vizinhança para evitar chegar ao trabalho antes do horário determinado, Mazé passou ao lado de um carro, parado no semáforo, com a filha e o marido da patroa, trocando carícias com a lascívia dos amantes, enquanto aguardavam o semáforo abrir.

Mazé não os viu, mas mesmo que isso tivesse acontecido, ela estava tão concentrada em seus devaneios sobre desfecho da novela que não se daria conta que havia muito mais do que simples afeição entre eles. Mas eles a viram e ficaram sobressaltados com a possibilidade de estar à mercê de uma testemunha.

Atenta às suas obrigações e sem cuidar do que não lhe dizia respeito, Mazé ia levando a vida. Mas como a vida não é o que deveria ser, mais uma vez, Mazé foi despedida, e mais uma vez não se deu ao trabalho em questionar sobre a desconfiança daqueles que têm segredos. E tratou de arrumar um novo emprego, sem perder o capítulo final da novela.