O último manuscrito

Posted by Vicente de Oliveira Luiz | Posted in | Posted on 13:44

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                             O Último Manuscrito
                                                                  
                                                                                       Eze e Vlad in memoria



Consta nos anais das civilizações perdidas que as comemorações do jubileu de coroação de Khedir, rei de Daren, ocorreram sob a influência nefasta dos astros, desencadeando acontecimentos que provocariam o fim dos dias de glória do reino.

Porém, aqui e ali, longe dos olhos e ouvidos do rei, um e outro deixavam escapar da barreira dos dentes que, enredado por aleivosias, Khedir cedeu ao desatino e abrigou o obscurantismo permitindo que o esclarecimento fosse preterido da vida do seu povo para sempre.

Anos depois, com o ocaso às portas do reino de Daren, os súditos ainda se lembravam dos festejos do jubileu de coroação de Khedir. Naqueles dias, a multidão ocupou ruas e praças para ver as apresentações de palhaços, malabaristas, atores e músicos. Até mesmo Tarsin, neto de Alaor, conselheiro do rei, se juntou ao povo para ovacionar as trupes de mambembes, embora fosse mais afeito aos estudos e ao recolhimento.

As comemorações culminaram com a leitura da história do reino para a corte e convidados estrangeiros em um banquete marcado por requinte e opulência.

O mestre-historiador iniciou a narrativa no momento em que o rei Muntari consolidava as fronteiras do reino. Depois, enumerou desde as pequenas realizações até as grandes façanhas dos reis de Daren, sem mencionar nenhum feito, extraordinário ou não, de Khedir.

Parecia que ninguém tinha se dado conta desse lapso na narrativa do mestre-historiador até que um dos convidados ironizou:

- Khedir cochilou na história!

Normalmente, todos riam dos casos de indolência do rei,  considerados caprichos de quem tudo era permitido. Desta vez, no entanto, o comentário causou mal-estar entre os comensais, emudecendo os talheres.

O rei experimentou mais uma vez recalques que o acometiam desde sempre. Órfão ainda menino, Khedir se sentia à sombra de seus ancestrais, sobretudo de Muntari, cuja presença pairava sobre o reino com a força de seu carisma.

Assim que os convivas se retiraram, os conselheiros se reuniram. Sob a acusação de desrespeito ao rei, os mais exaltados pediram a prisão do mestre-historiador e a destruição do pergaminho da história do reino.

O conselheiro Alaor advertiu que dar mostras de que o rei havia ficado melindrado por não ter sido mencionado na leitura do mestre-historiador revelaria a fragilidade de Khedir aos olhos dos súditos.

Os conselheiros se agitaram, e o salão do conselho ficou em polvorosa.

– Queimem todos – bradou um dos mais irascíveis.

Alguns conselheiros até se insurgiram, mas foram silenciados a berros e perdigotos em nome da honra do rei.

Antes que o desvario fosse encaminhado para a aprovação de Khedir, o conselheiro Alaor sugeriu a nomeação de censores para preservar os textos que não atentassem contra a dignidade do rei e a estabilidade do reino. O conselho louvou a prudência de Alaor e condenou à fogueira os textos que fossem censurados.

Quando o manuscrito da história do reino foi lançado às chamas, diante do rei e dos conselheiros, a multidão aplaudiu pensando se tratar de mais um evento comemorativo do jubileu de coroação. E continuou batendo palmas quando as fogueiras se espalharam por Daren.

Em festas marcadas por orgias e bebedeiras, obras de astronomia, tratados de medicina e compêndios de agricultura viraram cinzas a despeito da precaução do conselheiro Alaor. Temendo desagradar ao rei e à turba, os censores não ousavam poupar nem mesmo manuais de jardinagem.

Denúncias de escritos ofensivos ao rei vinham de todas as partes do reino. Alguns súditos se valeram de delações para se livrar de dívidas ou de  desafetos. Sem verificar se as acusações procediam, os soldados do rei vasculhavam as casas e prendiam os moradores, se encontrassem qualquer manuscrito, ou torturavam caso não.

Quando os insatisfeitos exteriorizaram indignação, as prisões ficaram cheias; e os carrascos, ocupados. Tarsin só não foi preso por ser neto do conselheiro Alaor, pois mais de uma vez foi flagrado tentando enviar pergaminhos para além das fronteiras de Daren.

Ao saber das peripécias do neto, Alaor o advertiu, com a autoridade de conselheiro, que a vontade do rei tinha que ser cumprida e, com a prudência de avô, o exilou a pretexto de que se familiarizasse com os costumes de outros povos.

A crise interna de Daren não passou despercebida pelos reinos vizinhos. Depois de décadas de paz, eles declararam guerra, reivindicando os territórios ocupados por Muntari.

Com os anos, as guerras abalaram a prosperidade do reino. Os impostos subiram, e o comércio, que antes atraía mercadores com especiarias tão variadas quanto as línguas que as nomeavam, fez-se escasso, agravando o descontentamento do povo.

Mesmo nestes tempos difíceis, as buscas aos manuscritos não cessaram. Mais raras, as fogueiras inflamavam o povo como nunca.

Quando soldados recém-chegados dos campos de batalha entregaram um rolo de pergaminho velino em um jarro de cerâmica encontrado numa gruta no deserto aos censores, eles presumiram se tratar do último pergaminho de Daren e não o queimaram para que o próprio rei tivesse o prazer de fazê-lo diante da multidão.

Os censores apresentaram o manuscrito ao rei que o pegou com cuidado. Devido à dificuldade para enxergar, ele acariciou com as pontas dos dedos palavras que jamais leria. Com a morte na cabeceira, Khedir não queria ser lembrado como o rei que privou seu povo das letras, tampouco parecer tíbio revogando o próprio decreto.

O rei ficou por longo tempo com o pergaminho no colo até decidir chamar o neto do falecido conselheiro Alaor. Embora continuasse desafiando publicamente o decreto do rei e acusando os censores de covardia, Tarsin atendeu à solicitação de Khedir e foi à corte para ouvir do próprio rei que caberia a ele decidir se o povo se reuniria para ouvir a leitura ou o crepitar das chamas do último manuscrito.

À noite, recolhido em seus aposentos, Tarsin repetiu os gestos de Khedir e tateou o pergaminho. Seus olhos foram capturados pelas palavras iniciais do manuscrito, e ele prosseguiu a leitura que o rei havia iniciado com as pontas dos dedos.

“Chego ao fim dos meus dias convencido de que a mentira tem melhor acolhimento do que a verdade. Outrora, quando fui responsável por copiar e enviar as leis do rei para todas as províncias do reino, acreditei que não fosse assim. Protegido na torre norte do castelo, só me preocupava com o rigor da transcrição e a beleza da grafia no código das leis, até que vozes se levantaram das ruas e puseram fim à tranquilidade daqueles dias.

A turba vociferava contra a presença de estrangeiros no reino, advertindo para o perigo que eles representavam aos costumes e religião. Não me juntei aos ataques, tampouco os refutei, supondo que não iriam longe, mas me enganei. O que se bradava nas ruas estava sendo engendrado nos salões do rei.

Nestes dias conturbados, ocorreu a mais importante corrida de cavalos do reino. E agitação do hipódromo silenciou as ruas.

Depois do páreo principal, foram identificados no cocho do cavalo vitorioso resquícios de uma mistura de água, mel e aveia. Como essa prática proibida para melhorar o desempenho dos animais era comum em outras terras e o proprietário da baia fosse estrangeiro, a conclusão de que se tratava de fraude foi imediata. Embora a conduta do acusado jamais tivesse sido questionada, o puro-sangue vencedor fizesse parte de um plantel de uma linhagem campeã e os queixosos estivessem à beira da falência devido a dívidas de jogo, a denúncia chegou ao tribunal do rei com a força de uma condenação.

Em um julgamento duvidoso, o tribunal sentenciou o acusado ao empalamento, confiscou todos os seus bens e perdoou as dívidas dos acusadores. O réu não alegou inocência nem pediu misericórdia. Em silêncio, ele se deixou conduzir ao cadafalso e agonizou até a morte mirando o firmamento.

Nos dias que se seguiram, não se ouviu mais ofensas nem se viu agressões aos estrangeiros. Só então, compreendi que era mais do que zelo por nossas tradições o que movia aqueles que incitaram a multidão e decidi buscar um lugar onde o clamor por justiça não fosse dirigido aos céus.

Nas minhas andanças, vi um homem livre ser acorrentado e chicoteado depois de alforriar seus escravos porque acreditava que o cativeiro humilha a todos, conversei com um homem justo encarcerado porque defendia que todos somos iguais perante a lei, caso contrário não há justiça, e ouvi um homem santo a caminho da forca pregar que as religiões são diferentes caminhos que conduzem a Deus.

Muitos anos e horizontes depois, encontrei refúgio para minhas quimeras à beira do deserto. Não fui adiante. Só aqueles que não temiam contemplar a solidão sem fim ousavam ir além.

Ali, vi andarilhos irem em busca de Deus ou da quietude da alma. Uns voltavam inflamados profetizando o fim dos tempos e condenando os homens à danação eterna. Outros retornavam silenciosos, cientes da própria ignorância sobre as verdades primeiras e incondicionadas.

Esses dias de aprendizado tiveram fim quando soldados de um grande rei em guerra pela consolidação das fronteiras do seu reino me privaram da paz dos ermos.

Vítima do que parecia um envenenamento, o grande rei mandou soldados em busca de alguém com conhecimento de ervas, já que não apresentava melhora sob os cuidados de seus médicos.

Não sei se foi pelo desejo de cumprir prontamente as ordens do rei, por eu viver isolado ou pelos meus cabelos brancos, mas os soldados atribuíram a mim conhecimentos que eu não tinha e me conduziram sob escolta ao acampamento do rei.

Apreensivo, fui levado à tenda do grande rei. Depois de alguns dias adoentado, o rei parecia melhor e dormia tranquilamente. Os médicos me confidenciaram que o envenenamento não passou de uma indigestão e que delírios levaram o rei a acreditar em uma conspiração contra sua vida.

No dia seguinte, os médicos me avisaram que o rei acordou bem disposto e que a minha a presença não seria mais necessária. No entanto, pouco depois, voltaram contrariados para dizer que o rei me aguardava.

Parece que o rei havia esquecido o motivo da minha presença ou ainda estava febril, pois solicitou  que eu contasse como viviam os soberanos de outras terras.

Creio que os anos de solidão tiraram as travas da minha língua e também meu juízo. Entusiasmado discorri sobre a vaidade dos reis, advertindo que a perspectiva de ser lembrado, além do seu tempo, fascina tanto os reis que eles se preocupam mais em construir castelos suntuosos, colecionar amantes, montar exércitos que sequem os rios por onde passem ou possuir domínios onde o sol nunca se põe do que em promover a justiça e romper os grilhões do povo. E ousei a vaticinar que um dia os homens escolherão seus governantes e terão direito a professar suas crenças e a expressar suas opiniões.

O grande rei não compartilhou meu arrebatamento. Com um gesto, impediu que eu continuasse, mas me manteve ao pé de si, como se tivéssemos assuntos pendentes, e voltou a atenção para outros interesses.

Em reunião com seus comandantes, soube que a rendição dos inimigos estava prestes a acontecer. Satisfeito com as notícias dos campos de batalha, o rei aproveitou para acertar as contas com alguns nobres que, segundo seus espiões, entre si o chamavam de filho do usurpador, e tratou de  transformar seus excessos à mesa em um complô de assassinato.

Na manhã seguinte, ordenou que o cozinheiro e os dois ajudantes suspeitos de tentar envenená-lo fossem interrogados. À tarde, eles foram decapitados. Os rumores de que houve uma tentativa para matar o rei tomaram conta do acampamento, e os soldados se agitaram nervosos.

O rei ordenou aos comandantes que acalmassem as tropas e  ficassem de atalaia. À noite, mandou distribuir vinho aos soldados e ofereceu um banquete aos nobres. Alguns foram recebidos com entusiasmo; outros, com indiferença.

Aqueles nobres que receberam tratamento menos caloroso por parte do rei desconfiaram que a suspeita de traição pairava sobre eles e abandonaram o acampamento durante a madrugada.

Capturados na manhã do dia seguinte, antes mesmo de serem interrogados, eles negaram envolvimento na conspiração contra o rei e juraram fidelidade ao trono. Porém, quando indagados por que abandonaram as tropas do rei, não souberam responder e ficaram em silêncio.

O próprio rei saiu em defesa dos acusados, declarando que todos estavam cansados da guerra e com saudades de causa. E, para que não restasse dúvidas sobre a lealdade deles, pediu que cada um deles assinasse uma declaração em um pergaminho negando a participação no conluio para assassiná-lo.

Aliviados, os nobres obedeceram, sem se dar conta que acabavam de atestar a existência da conspiração contra o rei.  Em seguida, o rei ordenou que soldados levassem os pergaminhos assinados para lugares distantes e os escondessem em locais determinados por ele.

Com a chegada da notícia de capitulação dos inimigos, o acampamento se alvoroçou. O grande rei comemorou com os soldados e comandantes, enquanto esperava emissários dos reinos derrotados para ratificarem  as novas delimitações das fronteiras.

Assinados os tratados, o rei mandou seus soldados me buscarem, antes de levantar acampamento. Temendo o mesmo destino daqueles que o desagradavam, lamentei não ter fantasiado sobre reis que construíram castelos tão grandes que eram necessários guias para que os hóspedes não se perdessem, ou tão luxuosos que, nas horas de luz mais intensa, todos usavam vendas nos olhos para que não fossem ofuscados pelo brilho do ouro e dos cristais.

Mas não havia o que recear, rei queria apenas me recompensar, ainda que não me surpreendesse se fosse o contrário. Os soldados me conduziram até a tenda dos tesouros do rei e ordenaram que eu pegasse o que pudesse carregar. Em vez de outro e prata, preferi papiros, pergaminhos-velino, penas de ganso e um tinteiro de cerâmica e voltei à serenidade dos ermos.

Ainda hoje, penso nas consequências do estratagema do grande rei para subjugar seus detratores; mesmo vivendo isolado, ouço rumores dos seus feitos e da prosperidade do seu reino e prevejo que, desonrados e ressentidos, cedo ou tarde, aqueles nobres cobrem vingança, já que não há maior prova de delito do que por escrito.”

Depois de terminar a leitura, Tarsin ficou vagando por seus aposentos. Os acontecimentos narrados no pergaminho não deixavam dúvidas de que o autor conhecia eventos sobre o reino de Daren que a maioria dos súditos nem sequer suspeitava.

Além de histórias contadas em segredo, no mercado e na cozinha, sobre o manuscrito dos traidores, mais de uma vez, Tarsin ouviu o avô se referir a Muntari, como o filho do usurpador, e a maldizer seus espiões.

Não foi difícil para Tarsin supor que os nobres coagidos por Muntari a assinar os pergaminhos ficaram sob suspeita de traição. E, às escondidas, procuraram destruí-los, mas as buscas foram em vão e só não foram deixadas de lado pelo temor que eles tinham de passar para a posteridade como traidores.

Diante das dificuldades para encontrar os pergaminhos, liderados por Alaor, eles orquestraram a encenação na leitura da história de Daren na festa do jubileu da coroação para que o próprio Khedir autorizasse a destruição dos manuscritos.

Entregue a conjecturas, Tarsin foi até o jardim e observou a lua minguar no céu de Daren. Se tomasse conhecimento do conteúdo do manuscrito, Khedir não demoraria a perceber que fora induzido a proibir os pergaminhos e acusaria de perfídia os envolvidos em fazê-lo de tolo. Os nobres, por sua vez, cientes da artimanha de Muntari para controlar seus ancestrais, jamais aceitariam que, mais uma vez, pairasse sobre eles a pecha da traição.

Um conflito de reputações entre o rei e nobres agravaria qualquer possibilidade de defesa diante das tropas dos reinos vizinhos que ameaçavam as fronteiras de Daren.

Porém, as palavras do nômade do deserto provocavam ainda mais inquietação em Tarsin. No princípio, elas causariam espanto, depois curiosidade e, finalmente, suscitariam dúvidas sobre  leis e crenças, até então inquestionáveis.

No dia seguinte, não fossem as roupas e o séquito, ninguém o reconheceria. Seus passos, antes firmes, agora titubeavam. O olhar vacilava sem se fixar em nada. Sombrio, ele se arrastou até o palácio.

Diante do rei e do conselho, Tarsin declarou:

 - Este pergaminho é ofensivo ao rei, aos nobres e ao povo. Portanto, deve ser destruído. 

Em seguida, entregou o último manuscrito de Daren ao rei Khedir que o lançou às chamas sob aplausos da multidão.
                                                                                                                                                                                Por Vicente de Oliveira Luiz